sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017


   David Mourão-Ferreira faz hoje* 90 anos.


IN MEMORIAM MEMORIÆ [1]
(Fragmento)

Mas é no mármore que escreves?
            Mármore, sim…
                               mole, porém,
            como a casca da árvore,
            como o vento no sono
                                        escutado,
            como a sombra da nuvem
                                             no mar…

E fica todavia o que tu escreves!
E fica todavia o que não dizes!
E fica todavia, à flor da pele,
o que nem nas raízes existia!
E fica todavia, toda a vida,
o que nem se sonhava que ficasse:
uma saia de ráfia que se tira,
e não o corpo, o corpo que se amava;
                                                    a circunstância trémula do crime,
                                                    e não o grande amor que o motivara;
                                                    o número de telefone que se disse,
                                                    em vez dos dedos longos que o marcavam;
                                                    uma lua, uma data, um arrepio,
                                                    em vez da Inquietação e da Palavra!

David Mourão-Ferreira, 19973: Obra Poética (1948-1988).
Lisboa: Presença; pp. 188-189. (1.ª ed.: 1988. «Introdução»: Eduardo Lourenço.)

[1] Título do poema e do livro (plaquete, com ilustrações de Alice Jorge), 1962, Lisboa, Minotauro. Em Obra Poética, 19973, pp. 181-192.

Para recordar e/ou ler e/ou ser (mais) informado:

«[…] a temática predominante em David Mourão-Ferreira é a do amor; […] a sua técnica de versificação é exemplar e revela uma leitura atenta e aprofundada (e paciente) da nossa poesia clássica; […] não é só o amor, mas também certos aspectos que o imitam (as circunstâncias económicas, a “moralina” estabelecida, o esquecimento, o equívoco, o envelhecimento) aparecem como motivações de quase todos os poemas […]; a sua “modernidade” é extremamente discreta, mais sugerida do que praticada […]».

Eduardo Prado COELHO, 1972: O Reino Flutuante.
Lisboa: Edições 70; p. 263.

* Também fazem anos, hoje, «Rosalía deCastro» e «José Augusto Seabra».

NB1 - As fotografias do Poeta foram colhidas em Google+ / Imagens / David Mourão-Ferreira.
NB2 - Foram respeitadas grafia e pontuação das edições consultadas.

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