IV. Frutos da Terra e do Homem
Em torno da interrogação na poesia de Jorge de Sena [III]
[Termino, neste post, estudo inicialmente publicado (apenas texto), em 1998,
na revista Mealibra. Cfr. RODRIGUES, 1998.]
[Continuação do
post anterior, onde apresentei uma
síntese de natureza teórica, sobre os valores linguísticos e retóricos da
interrogação.]
Falámos acima na ausência de voz, voz que a
interrogação retórica uma vezes substitui, outras abafará. E a voz leva-nos, de
novo, à poesia de Sena, mais precisamente àquele poema de onde retirámos o
verso que é epígrafe deste trabalho. Poema já referido, também, na citação de
Fátima Morna, e que a seguir se apresenta na integridade de título e texto:
TENDO LIDO UMA CARTA ACERCA DE UM SEU
LIVRO DE POEMAS, QUE OFERECERA
Por
que entristeço ao ler o que de meus
versos
escrevem se não é de mim
que escrevem?
Será que
chora em mim o que meus versos foram
antes de ser
meus?
Por que
pergunto, se já sei por quê?
Escuto
longamente, leio, espero,
e o poema é
voz de toda a gente, todos eles, que,
não se tendo
ouvido, não a sabem sua.
E vêm chorar
em mim o coração traído,
a música
perdida em distracções urgentes,
umas palavras
que ninguém falou.
Não
entristeço, pois. Apenas sou pergunta,
e, sendo eu,
me esqueço ao perguntar. [SENA, 19772: 210]
A vários títulos nos parece
importante este poema de Sena. Foquem-se alguns. Comecemos pelas interrogações.
São três, e seguidas, e iniciam o poema. O poema nasce sob o signo da interrogatividade.
Um problema apoquenta, aparentemente, o poeta.
A primeira é constituída por três
versos, a segunda por dois, a terceira por um. Que nos dirá esta organização
vérsica? Em primeiro lugar, que há uma gradação a nível da forma. Havê-la-á
também a nível do conteúdo?
A
primeira interrogação é a verificação de um facto, de um estado de espírito: o
poeta fica triste porque escrevem acerca dos seus versos e não acerca dele,
poeta.
A
segunda é a razão/reconhecimento desse facto: o que chora no poeta é aquilo que
os seus versos foram antes de serem dele.
Para
quê, então, a terceira pergunta (que como retórica definição de pergunta
retórica se pode entender)? Para chegar às causas e à explicação última do ser
poeta. É o que dizem a segunda e a terceira estrofes.
Perguntas
retóricas, sim, mas aliadas a outras figuras, a gradação e o raciocínio,
sobretudo. [QUINTILIANO, 1836: 105-115;
LAUSBERG, 19823: 108-109]. Poderia este poema começar
pela segunda ou terceira interrogação?... Teríamos, nesse caso, outros poemas,
não este.
Este
poema é um silogismo ou, pelo menos, um entimema (thymós, «impressão emotiva ») [PLEBE & EMANUELE, 1992:
54; cfr. tb. LAUSBERG, 19823: 219-221]. Repare-se no final do
poema que, apesar da contradição que parece ter com o início, inclusivamente
nos aparece marcado pelo conector "pois", que interpretamos, por um
lado, com valor de conclusiva e por outro com valor de causal ou explicativa:
«Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta, / e, sendo eu, me esqueço ao
perguntar.»
Repare-se,
ainda, na função demiúrgica, de medium,
que o poeta assume no poema, como porta-voz da "tribo". Quem fala não sou eu: a minha voz é a voz
daqueles que não têm voz, é o que, parafraseando, ele diz, como o poema o
diz. A propósito:
Nos
anos 80, o protagonismo do texto invadiu a própria filosofia. Hoje vai abrindo
a idéia de uma textualidade geral que diz respeito em igual medida tanto à
literatura quanto à filosofia, de modo que as técnicas e os artifícios
textuais da primeira não diferem, em substância, das técnicas e dos artifícios
da segunda.(...)
Mas, se o texto se coloca hoje como
diafragma entre a arte de escrever e a arte de pensar, então o rhétoricien
moderno não pende mais nem para o lado dos artifícios estéticos, nem para o
das concepções filosóficas: ele pode surgir como o moderno demiurgo
intelectual, que conhece a arte mais essencial, a de manipular o texto. Nesse
sentido, ele tem um pé numa estética criadora (...) e outro numa filosofia não
metafísica: de um lado é perito em signos literários, de outro em seus
conteúdos filosóficos. [PLEBE & EMANUELE, 1992: 184]
Por
isso, os autores desta citação (professores de Filosofia em universidades
italianas) terminam o seu livro dizendo: «Há estética e há filosofia onde o
texto se presta a ser manipulado
retoricamente», em vez da frase com que Max Bense abre o seu Kleine Texttheorie [1969]: «Há poesia onde palavras
diferentes se encontram pela primeira vez.» [Id.:
186]
Mas
o poema «Tendo lido uma carta...» revela também dois aspectos, tidos hoje como
característicos da arte literária contemporânea: o apagamento e o
distanciamento do sujeito poético em relação ao seu próprio produto estético e, em consequência, a defesa da
autonomia desse objecto, atitude que deve ser praticada também pela crítica,
simbolizada aqui pelo eventual autor da carta.
Voltemos às interrogações de
Sena. Desta vez, com o poema
EPÍGRAFE PARA
A ARTE DE FURTAR
Roubam-me
Deus,
outros o
Diabo
- quem
cantarei?
roubam-me a
Pátria;
e a
Humanidade
outros ma
roubam
- quem
cantarei?
sempre há
quem roube
quem eu
deseje;
e de mim
mesmo
todos me
roubam
- quem
cantarei?
roubam-me a
voz
quando me
calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
- aqui
del-rei! [SENA, 19882: 17]
Uma interrogativa parcial, três vezes repetida, como
refrão, no final das três primeiras estrofes. Estrofes também elas gradativamente
constituídas por dois, três e quatro versos. Gradativamente também a nível de
conceitos, verticalmente colocados
Deus
Diabo
Pátria
Humanidade
Amor (?)
Voz
Silêncio
O poeta só pede socorro, isto é, só
deixará de cantar quando lhe roubarem o próprio silêncio. A liberdade, a todos
os níveis, foi sempre a maior luta do poeta. Repete-o frequentemente.
Trata-se de uma pergunta retórica,
associada à repetição e à gradação, que aliás faz lembrar outras usadas já
pelos trovadores e jograis, nomeadamente satíricos. Mas o seu valor é sobretudo
irónico, também pelo jogo que constrói e mantém, pelo inesperado do final.
Final tanto mais inesperado quanto do ritmo criado pela repetição do refrão
interrogativo, três vezes repetido, se esperaria que continuasse. Não continua
e em sua substituição uma exclamativa, o grito de socorro e de revolta, que
não deixa de ser interrogante, inquietante, incómodo. Prestemos atenção à curva
melódica e aos fonemas que constituem os lexemas do refrão, nas duas
realizações. Não se fica com a sensação de um toque a rebate crescente?...
Será necessário lermos mais poemas de Sena para nos apercebermos da importância da
interrogação na sua poesia, aos vários níveis em que ela se concretiza?...
Julgamos que não.
Gostaríamos, porém, de ler, apenas
ler, pelas interrogações que contém, pela reflexões que propõe sobre a
interrogatividade da arte, pela importância que a música teve na aparição da
poesia a Sena
OUVINDO O
QUARTETO OP. 131, DE BEETHOVEN
A música é,
diz-se, o indizível
por ser de
inexprimível sentimento
da consciência,
ou um estado de alma,
ou uma
amargura tão extrema e lúcida
que passa das
palavras para ser
apenas o
ritmo e os sons e os timbres
só pelos
músicos cientes de harmonia
e de
composição imaginados. Mas,
se assim
fosse, eles só dos homens
saberiam
mover-se nos espaços
que a
humanidade abandonada encontra
nos desertos
de si. Começariam
onde a
expressão verbal não se articula
por
impossível. Viveriam sempre
na fímbria
estreita à beira da maldade
e do absurdo,
como que suspensos
na solidão da
morte sem palavras.
Não é,
portanto, a música o limite
ilimitado dos
limites da linguagem,
para dizer-se
o que não é dizível.
Mas, se não
é, que dizem lancinates,
neste
discreto passeio pelo tempo,
os quatro
instrumentos semelhantes
no seu modo
de criarem som?
Tão terrível.
Sufocante. Doce
ou agridoce
desconcerto harmónico.
Que diz? Que
diz? Neste contínuo
de temas e
andamentos, de tonalidades,
o que se
justifica? Que discutem eles?
A sua mesma
natureza de instrumentos
e as
combinações até ao infinito
de um
mecanismo abstracto do imaginar?
Como pode uma
coisa que sentimos tão medonha,
tão
visionariamente séria e pensativa,
ser
irresponsável?
Será que nos
diz do aquém, do abaixo,
do infra, do
primário, do barbárico,
do animal sem
alma e sem razão?
Será que todo
este rigor tão belo
é como que a
estrutura prévia
de que
existimos ao pensar as coisas?
E não a
quintessência depurada
de uma
estrutura que se consentiu
todo o
significar a que as palavras vieram
da analogia
nominal e mágica
até à
consciência dos universais?
Não há tristeza
alguma nesta
vida
transformada em puro som,
em homogénea
outra realidade?
Não é de
angústia este rasgar melódico
da
consciência antes de criar-se humana?
De que,
portanto, vem este triunfo
que se
precipita, contraditório, nas arcadas
dos instrumentos
conversando essências?
É simples
convenção? É artifício?
Silêncio
irresponsável?
Se há
mistério na grandeza ignota,
e se há
grandeza em se criar mistério,
esta música
existe para perguntá-lo.
E porque se
interroga e não a nós,
ela se
justifica e justifica
o próprio
interrogar com que se afirma
não
quintessência ela, mas raiz profunda
daquilo que
será provável ou possível
como
consciência, quando houver palavras
ou quando
puramente inúteis forem. [SENA,
19882: 181-182]
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