terça-feira, 30 de setembro de 2014

IV. Frutos da Terra e do Homem


Pedro Homem de Mello
no Roteiro de Viana*


David F. Rodrigues


  
            Roteiro de Viana foi uma revista que se publicou, em Viana do Castelo, entre 1959 e 1988. Saía no mês Agosto, dedicada à célebre Romaria da Senhora da Agonia. Foi seu fundador, editor e diretor José Camilo Pastor (1911-1988)(1).
            Cada número, num total de três dezenas, abre com «uma saudação dirigida aos forasteiros em visita à cidade atraídos  pelas Festas e um agradecimento aos colaboradores e anunciantes […]. Na sua estrutura gráfica evidencia-se uma certa homogeneidade mantendo-se como elemento caracterizador uma forte presença de anúncios publicitários que extravasam os limites da região e são o seu suporte financeiro, intercalados aqui e ali por diferentes trabalhos na sua maioria de âmbito turístico-cultural, versando temas relacionados com a arqueologia, a etnografia, a etnologia, o artesanato, a história, o património e a literatura com especial destaque para a poesia e conto, salientando-se como preocupação fundamental a promoção da cidade de Viana do Castelo, com algumas incursões noutras localidades do Alto Minho.» [Viana & Fernandes, 2002/2003: 255(1)]

                                  N.º 1 - 1959                                                                N.º 30 - 1988

            No âmbito da literatura, cabe referir que se encontram no Roteiro textos de criação literária (poemas e contos) e breves estudos sobre alguns poetas e escritores. No domínio da poesia, são 86 os poemas autónomos. Dois, porque recolha do folclore, não estão assinados: «Cancioneiro Vianense / Todos me querem» (1959: 81(2)) e  «Cantigas Populares (Das sargaceiras)» (1967: 148(2)). Os restantes 84 encontram-se identificados pelos nomes dos autores, por pseudónimos ou apenas por iniciais. Os poetas colaboradores eram vivos, na sua quase totalidade. De falecidos, encontramos poemas de Digo Bernardes [sé. XVI, («Vale do Lima», soneto XXXI, em 1962: 81(2), repetido em 1984: 159(2))], João da Rocha [1868-1921, («Ao Rio Lima», 1967: 51(2))] e Rosalía de Castro [1837-1885, («A Gaita Galega», 1987: 113(2)). Nos anos de 1970 a 1972, foram reproduzidos poemas de Agostinho Veloso, falecido em fevereiro de 1970, entretanto saídos noutras publicações. Agostinho Veloso colaborou no Roteiro, com textos em verso, ininterruptamente, desde 1961.
       De entre os poetas vivos que publicaram no Roteiro, alguns nomes merecem ser destacados, pela qualidade dos seu poemas e pela sua relativa projeção nacional e/ou regional. Temos, por um lado, António Correia de Oliveira (1878-1960) e Pedro Homem de Mello (1904-1984), e, por outro, Carlos Lobo de Oliveira (1895-1973) e Castro Gil, pseudónimo de Amadeu Torres (1924-2012).

            Tratarei, neste apontamento, apenas dos poemas que Pedro Homem de Mello publicou no Roteiro.

Afife tem 5 letras
Pedro 5 letras tem...
Até o meu triste nome
Com Afife rima bem!

            Esta quadra de sabor popular (redondilha maior), com o título de «Eco» e um certo sabor narcisista, encontra-se no Roteiro de 1971: 33(2). Não a encontrei nos cerca de trinta livros de poesia que o poeta publicou, antes ou depois desta data. O mesmo se passa com «Rua» e «Vitória», poemas publicados apenas, respetivamente, nas revistas de 1962: 52(2) e de 1965: 48(2). Há , porém, na obra de Pedro Homem de Mello, poemas com estes títulos, mas não com as redações dos que se encontram no Roteiro. Os que aqui se encontram são os seguintes:
  
Rua
Vitória

Rua que só tens mãos para dar palmas
E ao eco dos aplausos adormeces.

Ó rua surda às lágrimas e às preces!
Mar de cabeças que é deserto de almas.

Rua de sempre,
Eternamente inquieta.
Búzio de Satanaz.
Pátria do medo.
Onde nunca o murmúrio de um segredo
Iluminará a face do Poeta.

Ó rua inevitável que me espera!
Rua! Sinto-lhe a sombra, o bafo, a gula...

Rua. Peso de ferro que me anula
A mim, que sou o irmão da Primavera!

De hoje
A vinte anos,
Quando eu fôr
Ainda,
O bailador maior da Serra de Arga,
E tu,
Frágil saudade,
Quase finda,
No vale apenas,
Uma sombra,
Amarga

Verás,
Então,
Como envelhece o Povo
E como, nele, as rugas chegam cedo.
E eu cantarei, feliz,
E cada vez mais novo!

Por ter amado, sempre,
Mas sem medo...

Afife, 1936

            Além destes, Pedro Homem de Mello publicou ainda, no Roteiro, mais cinco poemas, cujas referências anoto no quadro seguinte:

Poema
Ano
Pg.*
1) «De Viana vêm os cravos e os lilazes»
2) [«O Lima foge entre os meus dedos vãos» -1º verso]
3) «Embarque»
4) «Almocreve»
5) «Calvário»
1960
1968
1969
1970
1972
2
61
164
243
61

            Dos oito poemas publicados, apenas um traz a indicação de inédito - «Almocreve» (1970) - que, contudo, aparece incluído, com novo título e outras alterações, na coletânea Desterrado. Este livro (em edição de autor) veio a lume e foi posto a circular, possivelmente, em agosto do mesmo ano, uma vez que a sua composição e impressão são dadas como concluídas em 30 de julho.


            No quadro seguinte, indico o livro onde cada um destes poemas foi publicado. Mantenho a numeração da primeira coluna, mas modifico o título do poema, nos casos em que tal se verifica.

Poema
Livro
Ano
Pg.
1) «Carta a Ruben»
2) «Um rio foge»
3) «Embarque»
4) «Conquista»
5) «Calvário»
O Rapaz da Camisola Verde
As Perguntas Indiscretas
Miserere
Desterrado
Eu Desci aos Infernos
1954
1968
1948
1970
1972
57-58
57-58
94
29
44

            Temos, assim, que três poemas mudaram de título: «De Viana vêm os cravos e os lilazes», no Roteiro de 1960, era «Carta a Ruben», em O Rapaz da Camisola Verde (1954); o poema sem título do Roteiro de 1968 chama-se «Um rio foge», em As Perguntas Indiscretas (1868), mas onde, em dois versos (1.º e 9.º) a palavra «rio» substitui ou foi substituída pela palavra «Lima»; e «Almocreve», no Roteiro de1970, passa a «Conquista», no Desterrado (1970).

            Dois destes poemas, porém, sofreram significativas alterações na sua estrutura: «Embarque» e «Almocreve»/«Conquista». Começo por apresentar este último, colocando na coluna da esquerda a versão (ainda inédita) saída no Roteiro e, na coluna da direita, as alterações encontradas no livro.

«Almocreve» - Roteiro (1970)
«Conquista» - Desterrado (1970)

Vendo todos os meus versos
– Poeta de compra e venda!
Zomba de mim – mas os versos
Haverá quem os entenda?
Vendo na rua, ao balcão,
E, às vezes, até na praia!
E o dinheiro que eles dão
Logo, frívolo, desmaia...
Riem tulipas na jarra
Do quarto onde ambos dormimos
E a paz – uma paz bizarra!
Põe-nos, nas pálpebras, limos...
E acordo, só, se outra rima
Lembre, de súbito, a feira
Em que a luta quando anime
Torne a vida, verdadeira.
Bailo então, porém, sòzinho
Como os Poetas  que o são.
E o oiro sabe-me a vinho...
E os versos sabem-me a pão!

(Inédito)

Verão de 1970

….................................................
«Poeta de compra e venda»
Zomba de mim.
                          Mas os versos
…..................................................
…..................................................
…..................................................
…..................................................
Sonham tulipas na jarra
…..................................................
E a paz – uma paz bizarra! –
…..................................................
…..................................................
Lembra, de súbito, a feira.
«- Acima, Gageiro, acima!
Vê se vês a Pátria inteira!»
Por fim, bailo. Tão sòzinho
…...................................................
…...................................................
…...................................................



Amália e Pedro Homem de Mello (dançando)

            «Embarque» é, muito provavelmente, o poema mais conhecido de Pedro Homem de Mello e, certamente, o mais popular. Não com a estrutura com que inicialmente o publicou em Miserere (1948) e transcrito no Roteiro (1969). Além disso, o título por que hoje é mais conhecido - «Havemos de ir a Viana» - era, originalmente, «Embarque». Como se sabe, este poema foi depois interpretado como fado por Amália Rodrigues, com música de Alain Oulman. Eis as duas versões:

Miserere (1848) e Roteiro (1969)
Versão cantada por Amália

Embarque

Se o meu sangue não me engana
Como engana a fantasia
Havemos de ir a Viana
Ó meu amor de algum dia!

E entre sombras misteriosas
Em rompendo ao longe estrelas
Trocaremos nossas rosas
Para, depois, esquecê-las.





Portanto, de flor ao peito
Partamos hoje... Amanhã
Pode o pomar já desfeito
Não nos dar toda a maçã.




Ciganos! Verdes ciganos!
Deixai-nos com esta crença:
- os pecados têm vinte anos?
Os remorsos têm oitenta!


Havemos de ir a Viana

Entre sombras misteriosas
em rompendo ao longe estrelas
trocaremos nossas rosas
para depois esquecê-las.

Se o meu sangue não me engana
como engana a fantasia
havemos de ir a Viana
ó meu amor de algum dia
ó meu amor de algum dia
havemos de ir a Viana
se o meu sangue não me engana
havemos de ir a Viana.

Partamos de flor ao peito
que o amor é como o vento
quem pára perde-lhe o jeito
e morre a todo o momento.

Se o meu sangue não me engana
etc., etc.

Ciganos , verdes ciganos
deixai-me com esta crença
os pecados têm vinte anos
os remorsos têm oitenta.


            José Maria Lacerda e Megre compilou e reproduziu, em Manuscritos e Outros Inéditos de Pedro Homem de Mello (20112: 14-15; 1.ª ed. 2004), o manuscrito deste poema, tal como, certamente, foi entregue pelo poeta aos autores do fado-canção, com as alterações pedidas e/ou sugeridas. Eis a reprodução do referido manuscrito:


       Além do título, verificam-se algumas outras modificações, na redação para ser cantada, a nível da estrutura estrófica e de palavras. Na versão do fado, a 1.ª estrofe de «Embarque» passa a refrão, em «Havemos de ir a Viana». A quadra, porém, é repetida (passando, por isso, a oitava), com os versos 3 e 4 repetidos em ordem inversa, ou seja: verso 5 = 4 e 6 = 3, mas verso 7 = 1 e 8 = 2. A alteração mais significativa encontra-se, todavia, na terceira quadra, que recebe, na prática, uma nova redação, de conteúdo amoroso mais adequado ao fado e melhor acentuação métrica.

            É sabido que Pedro Homem de Mello foi, muito provavelmente, o poeta contemporâneo de projeção nacional que mais cantou a região do Alto Minho, em geral, e de Viana do Castelo, em particular. Nomeadamente Afife, onde possuía a Quinta de Cabanas (outrora convento) e onde passava, todos os anos, largos períodos. Com se leu e de novo se pode ler no poemas seguinte:

Canção de Viana
               ao Domingos de Carreço

Eu sou de Viana, cidade.
Eu sou de Viana que é vila.
Sou de Viana e sou da aldeia
Sou do monte e sou do mar.
A minha terra é Viana!
Quem diz Viana, diz Cerveira,
Quem diz Cerveira, diz Agra…
- Só dou o nome de terra
Onde o da minha chegar!

Dancei a Gota em Carreço,
O Verde Gaio em Afife
(Dancei-o devagarinho
Como a lei manda bailar!)
Dancei em Vile a Tirana
E dancei em todo o Minho
E quem diz Minho, diz Viana…

Ó minha terra vestida
Da cor da folha da rosa!
Ó brancos saios de Perre
Vermelhinhos na Areosa!
Virei costas à Galiza;
Voltei-me antes para o sul…
Santa Marta! Trajo Verde…
(Como o povo era poeta
Àquele trajo (tão verde!)
Deram-lhe o nome de azul…)

Virei costas à Galiza
Voltei-me antes para o mar…
Santa Marta! Saias negras…
Mas como o povo é poeta
Aquelas saias tão negras
Têm vidrilhos de luar!

Virei costas à Galiza…
Pus-me a remar contra o vento!…
Santa Marta! Saias rubras…
Ó Santa Marta vestida
Da cor do meu pensamento!

A minha terra é Viana,
São estas ruas compridas,
São os navios que partem
E são as pedras que ficam…
É este sol que me abrasa,
Estas sombras que me assustam…
A minha terra é Viana.

Ai! Este sol que me abrasa
E estas sombras que me assustam!(3)



(1) Para mais informação sobre a revista e o seu fundador, ver Viana, R. A. F. & Fernandes, A. I. R., 2002/2003, separata de Estudos Regionais, n.º 23/24: 253-257.
(2) Nenhum Roteiro traz paginação. O n.º indicado, todavia, sempre ajudará a localizar o poema, em eventuais consultas.
(3) Pedro Homem de MELLO, 1942: Pecado. Lisboa: Edições Gama, pp. 51-54. (Pref. de José Régio.) Também em P. H. MELLO, 1983: Poesias Escolhidas. Lisboa: IN-CM, pp. 54-55.
NB – Em todas as citações, transcrições e referências, respeitei a grafia das edições consultadas. 

* Este texto foi publicado, inicialmente, na revista A Falar de Viana, 2014, pp.183-189. A sua reedição, neste blogue, sofreu, naturalmente, ligeiras alterações de apresentação gráfica.

sábado, 27 de setembro de 2014




NB1 - Escrito para o casamento da Júlia Bacelar e António Araújo, este poema foi lido pelo autor no fim do banquete. Não admira, por isso, que tenha sido muito aplaudido.
NB2 - Muito obrigado, Júlia e António, por me terdes autorizado a sua publicação. Beijinho e abraço.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

I. Poesia em livro

                  Todos os dias são da poesia e sua partilha, como pão nosso de cada dia.


 [Continuação do post anterior, dentro da mesma rubrica. Fim de Vibração de Nervos.]  


NB - Para ampliar, clicar sobre cada diapositivo.





Vibração de Nervos
Links, para cada post

NB – Tal como no livro, os poemas sem título vão indicados pelo primeiro verso e sem sublinhado.

Post 01: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/08/i.html (Além das pp. Iniciais, inclui o poema-dedicatória «a todos quantos na vida lutaram»)
Post 02: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/08/i_10.html (Inclui os poemas «porta 1» e «prostituição da palavra»)
Post 03: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/08/i_18.html (Inclui os poemas «ser homem é ser» e «homem terrestre»)
Post 04: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/08/i_20.html [Inclui os poemas «o meu canto» (aos meus pais)»]
Post 05: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/08/i_25.html (Inclui os poemas «um grito», «gritei ao mar» e «mudo / e com juízo»)
Post 06: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/08/i_27.html (Inclui os poemas «poema de / ao fogo», «santíssima trindade», «sobre um rosto» e «decisão»)
Post 07: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/09/i.html (Inclui os poemas «busco», «o incógnito é um espinho», «a terra é um pijama» e «o fumo / a fome»)
Post 08: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/09/i_8.html (Inclui os poemas «porta 2» e «assonetado soneto»)
Post 09: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/09/i_11.html (Inclui os poemas «hoje quando acordar», «as minhas setas» e «1 maio 74»)
Post 10: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/09/i_14.html (Inclui os poemas «poema-trabalhador», «na forma de ver», «o meu país» e «vou contigo»)
Post 11: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/09/i_16.html (Inclui os poemas «pedestal», «madrugada» e «poeta»)
Post 12: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/09/i_18.html (Inclui os poemas «se me disserem que este verso», «abracadabra» e «o meu poema»)
Post 13: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/09/i_21.html (Inclui os poemas «1 - o sonho do pássaro», «2 - a voz do pássaro», «3 – o canto do pássaro» e «eu venho da capital»)
Post 14: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/09/i_23.html (Inclui os poemas «trago aqui uma dor», «os pés dos pês», «se eu não tivesse olhos» e «escravo»)
Post 15: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/09/i_25.html (Inclui os poemas «re volta te», «a minha árvore tem ramos» e «às vossas palavras pegaram-se as moscas»]
Post 16: http://paosointegral.blogspot.pt/2014/09/i_26.html (Índice do livro e links dos poemas neste blogue).