domingo, 17 de setembro de 2017

IV. Frutos da Terra e do Homem

Todos os dias são da poesia, como pão nosso de cada dia.

José Régio faz hoje 116 anos.


                 REDENÇÃO



Meus poemas desprezaram a Beleza…
Fi-los descendo e transcendendo lodos.
(Dos lodos todos e dos poemas todos
Aqui vos falo com feroz franqueza!)

Fi-los, sentando à minha mesa impura
Quantos pecaram, por qualquer dos modos
Que há, de pecar, entre judeus ou godos…
E assim os fiz mais belos que a Beleza.

Tenho as mãos negras e os sorrisos curvos
Dos que, na sombra, beijam as raízes
Do que parece claro à luz de fora.

Vinde aos espelhos dos meus olhos turvos!
Se sois infames, fracos, e infelizes,
Neles vereis como já nasce a aurora.

José Régio, 19695: Biografia.
Lisboa: Portugália; pp. 151-2. [Respeitada grafia da edição consultada.]


NB – As fotografias do Poeta foram colhidas em Google / Imagens / José Régio.
IV. Frutos da Terra e do Homem

Todos os dias são da poesia, como pão nosso de cada dia.

Guerra Junqueiro faz hoje 167 anos.



O PAPÃO



As crianças têm medo à noite, às horas mortas,
Do papão que as espera, hediondo, atrás das portas,
Para se levar no bolso ou no capuz dum frade.
Não te rias da infância, ó velha humanidade,
Que tu também tens medo ao bárbaro papão,
Que ruge pela boca enorme do trovão,
Que abençoa os punhais sangrentos dos tiranos,
Um papão que não faz a barba há seis mil anos,
E que mora, segundo os bonzos têm escrito,
Lá em cima, detrás da porta do infinito!


Guerra Junqueiro, 1967?: A Velhice do Padre Eterno.
Porto: Lello & Irmão; p. 33. [Respeitada a grafia da edição consultada.]



 NB1 – O volume consultado não traz n.º de edição. Daí, a interrogação sobrescrita ao ano.
NB2 – As fotografias do Poeta foram colhidas em Google / Imagens / Guerra Junqueiro.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

IV. Frutos da Terra e do Homem

Todos os dias são da poesia, como pão nosso de cada dia.


Bocage faz hoje 252 anos.


O MACACO DECLAMANDO
(Apólogo XVI)

      Um mono, vendo-se um dia
     Entre brutal multidão,
     Dizem lhe deu na cabeça
     Fazer uma pregação.
      
     Creio que seria o tema
     Indigno de se tratar;
     Mas isso pouco importava,
     Porque o ponto era gritar.
      
     Teve mil vivas, mil palmas,
     Proferindo à boca cheia
     Sentenças de quinze arrobas,
     Palavras de légua e meia.
      
     Isto acontece ao poeta,
     Orador, e outros que tais:
     Néscios o que entendem menos
     É o que celebram mais.

Bocage, 1968: Obras.
Porto: Lello & Irmão; p. 1131.

NB - As imagens da Poeta foram colhidas em Google / Imagens / Bocage.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

IV. Frutos da Terra e do Homem


Todos os dias são da poesia, como pão nosso de cada dia.

Natália Correia faz hoje 94 anos.



BALADA PARA UM HOMEM
NA MULTIDÃO


Este homem que entre a multidão
enternece por vezes destacar
é sempre o mesmo aqui ou no Japão
a diferença é ele ignorar.

Muitos mortos foram necessários
para formar seus dentes um cabelo
vai movido por pés involuntários
e endoidece ser eu a percebê-lo.

Sentam-se à mesa de um café
num andaime ou sob um pinheiro
tanto faz desde que se esqueça
que é homem à espera que cresça
a árvore que dá dinheiro.

Alimentam-no do ar proibido
de um sonho que não é dele
não tem mais que esse frasco de vidro
para fechar a estrela do norte.
E só o seu corpo abolido
lhe pertence na hora da morte.

Natália Correia, 1975: Poemas a Rebate.
Lisboa: Dom Quixote, p. 69.

NB - As imagens da Poeta foram colhidas em Google / Imagens / Natália Correia.

domingo, 10 de setembro de 2017

IV. Frutos da Terra e do Homem


Todos os dias são da poesia, como pão nosso de cada dia.


Nicolau Tolentino faz hoje 277 anos.


À MULHER QUE AÇOITOU O MARIDO


Mulher do capelista, acaba a empresa,
Que o mundo sem razão chamou tirana;
Vai açoitando esse infeliz banana,
Nódoa do sexo, horror da natureza.

A vil rapaziada portuguesa
Com falsa cantilena o povo engana;
Nem coifas inventaste à castelhana,
Nem as vastas fivelas à maltesa;

De mais alta invenção é bem te prezes;
Legislando melhor que Tito ou Numa,
Emendaste uma lei dos portugueses;

Não padece isto dúvida nenhuma;
A lei açoita a quem casar duas vezes;
Tu mostras que contigo basta uma.

Nicolau Tolentino, 2004. Sátiras
(Org. Vasco Graça Moura). Lisboa; p. 108.



NB - As imagens do Poeta que ilustram este "post" foram colhidas em Google / Imagens / Nicolau Tolentino de Almeida.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

IV. Frutos da Terra e do Homem


Todos os dias são da poesia e sua partilha, como pão nosso de cada dia.


Camilo Pessanha faz hoje 150 anos.

Ao longe os barcos de flores


Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora…
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil… quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora…

Camilo Pessanha, 19735: Clepsidra e Outros Poemas. Lisboa: Ática; p. 173. [Respeitada grafia da edição consultada.]


NB - As fotografias do Poeta que ilustram este "post" foram colhidas em Google / Imagens / Camilo Pessanha!