terça-feira, 29 de março de 2016



david  f.  rodrigues  regressa  à  poesia  com

estes cantares fez & som escarnhos d’ora*




José Manuel Mendes



     Desde 1988 que david f. rodrigues cuidava com desvelo do seu silêncio editorial. Escolhera, aliás, entre instantes de recepção feliz, a via para a sua construção, fundida nos destinos da docência, antes e após o doutoramento.


     Regressa agora com estes cantares fez & som escarnhos d’ora, colectânea que, do título ao conjunto das opções temáticas e de modulação dos versos, restitui veios profundos do trovadorismo, no segmento em que a relação com o tempo e a realidade concretos se torna decisiva. Ou, se assim se preferir, inscreve a actualidade, o que no contemporâneo é presente com acento agudo, numa linhagem mutacional, unindo águas (permito-me a metáfora) porventura em dispersão e atritividade.
     O livro traz em si o traço da corrosão mediante instrumentos que percorrem, recorrem, humor e sarcasmo, uma multivalência da ironia, o burlesco, o erótico, a pústula colectiva das injustiças, os registos disfémicos até à ferida. Que é, não nos iludamos, de todos nós:

           “casa roubada
             troikas à porta
            (…)
            troika por troika
            fica-se sempre troikado”;

ou, como que ao acaso da leitura:

           “é por teres sido
            mediterrâneo
            lago privado do poderoso
            império

           que persistes em ser
            hoje este louco mar~
           conhecido só por tenebroso
           cemitério”.

     Ao apurado conhecimento da língua (a que as práticas de investigação académica conferiram peculiares horizontes) associa o poeta marcadores de melodia e ritmo, a meu ver, assinaláveis. A tradição clássica, música de câmara sobretudo e as sugestões da pop ou do rap, mais recitativo e turbulento, colam-se, num processo que se afigura consciente, ao decurso / discurso de não poucas das sequências que se nos deparam. Ou serei eu, numa livre aproximação desconstrutiva, a acolhê-las de tal modo.
     Dois momentos (e toco, canto, invento percussões onde se me impõem). “a minha próxima residência por última terá / apenas dois candelabros de pé alto e focos / de luz azuis como dois ramos de flores selvagens”. Ouvem-se, oiço eu, o piano, o sopro melancólico do violoncelo, a orquestra. Em contraposição, insinuam-se a batida, os ingredientes do dizer na escala dos tons médios em passagens desta estirpe:

          “banco
            mundial contra a fome
            contra a fome mundial
            banco

            mundial
            banco contra a fome
            contra a fome banco
            mundial

            a fome
            mundial contra banco
            contra banco mundial
            a fome.”

     A oralidade, procurada com finura, faz parte do resto, o todo a que chamo resto na economia da enunciação: comunicabilidade e garridice, ligeireza, a ligeireza amiúde aparente de certos temperos no frasear e vis (inter)locutória, regionalismo e inclinação sentenciosa, o engenho de esconder e revelar.
     Na arquitectura do volume nada nasceu, pois, na mão do imponderado. Nem os elementos peritextuais, as citações de trovadores e nomes cimeiros da literatura a que pertencemos, Airas Nunes e José Saramago, Martim Soares e Camões e Vasco Graça Moura.
     Deixo uma das chaves para o enigma que toda a poesia é. Rente à porta, que porta?, saúde, como os amigos saudarão, este retorno de uma voz guardada ao fundo de um exílio. Um exílio quebrado. Em boa hora.

* Síntese da apresentação do livro, em Braga, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, no dia 18-12-2015.


2 comentários:

  1. Foi uma apresentação brilhante, com a sabedoria fundamentada de José Manuel Mendes, a fazer jus aos teus cantares que são uma obra prima de rigor criativo inusitado.

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    1. Muito obrigado, Isabel. Estiveste presente - tu e o António, recordo - e até leste um dos meus exercícios poéticos. Abraços!

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