sexta-feira, 6 de maio de 2016


estes cantares fez & som escarnhos d'ora

opinião crítica de Manuel Maria



O princípio da identidade, indispensável ao raciocínio lógico, tende a conduzir-nos à necessidade de a tudo colarmos um rótulo, ou seja, conferir uma espécie de bilhete de identidade. Ora é justamente o que se não deve fazer a estes cantares fez & som escarnhos d’ora, a mais recente publicação, em livro, da obra poética de David F. Rodrigues.
Devo confessar que estes cantares não me surpreenderam. E não me surpreenderam, porque, apesar da expectativa ser sempre elevada, há sempre sobejos motivos que confirmam esta minha soberba e despudorada exigência: a excelência da sua criação, fruto da sua inegável criatividade e do empenho aturado e exaustivo que confere a cada um dos seus textos.
Doutorado e especialista em Teoria do Texto, o poeta demonstra, uma vez mais, conhecer e dominar, como poucos, a matéria prima de que se serve para a construção e/ou desconstrução de uma tessitura que só pode arrebatar qualquer leitor, mesmo que, eventualmente, não domine tão completamente o código de que se serve o poeta.
Interventivo na sociedade em que se encontra inserido, parece pretender o poeta (esta repetição próxima não é uma distração, é, antes, uma reiteração, mais do que merecida) que a sua poesia transpareça, quiçá afirme, o testemunho inequívoco de uma cidadania de que não quer nem deve abdicar. O resultado final são estes cantares, que são de escárnio e são-no d’ora, porque mais não fazem do que nos mostrar como a realidade que o/nos rodeia é captada com tão perspicaz acuidade sensorial.
Conhecedor exaustivo de uma estrutura de superfície e de uma estrutura profunda, manipula o significante a seu bel-prazer, obtendo uma pluralidade de significados que vão ao encontro do que postulava/postula a Arte de Trovar (“per palavras cobertas que hajam dous entendimentos, pera lhe-lo nom entenderem […] ligeiramente”). E serve, na perfeição, a máxima latina dos nossos comediantes e satíricos: “ridendo castigat mores” = “corrige os costumes sorrindo”.
Mais do que se possa dizer/escrever acerca de, é imperiosa a leitura atenta – e lúdica! – d’estes cantares de David F. Rodrigues.
  

Porto, 06 de maio de 2016
Manuel Maria



4 comentários:

  1. Uma leitura muito inteligente e objetiva dos Cantares. Não é preciso muito para dizer o essencial. Nem muito rebuscado. Gostei...

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    1. Muito obrigado, Cláudio, pela pequena parte que me diz respeito. O mérito é, por inteiro, do crítico (e também romancista) Manuel Maria, a quem todo o louvor deve ser, por justiça, dirigido. Abraço!

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  2. É muito gratificante, para quem lê a criação poética de David F. Rodrigues, este testemunho de Manuel Maria, bem como de outros críticos e ensaístas que sobre «estes cantares […]» também já se pronunciaram. Gratificante, dizia, porque tais críticas são reveladoras de uma competência fundada e fundamentada, no saber e na experiência das artes literárias.
    Tais testemunhos reforçam o que leitores, amantes de poesia, percebem, como grandeza deste poeta: um estilo de poetar próprio, marca indelével que o identifica. Mesmo por leitores que, como eu, pouco conhecedores ou menos experientes sejam, em análise textual (por esta não ser ou ter sido sua área específica formação e trabalho).
    Nos poemas deste poeta, sente-se a destreza e, muito mais, a sensibilidade e a profundidade que os percorre, através do jogo das palavras, criando, a partir de combinações surpreendentes de significantes, um mundo outro de referências e leituras possíveis, intensas e poderosas.
    Este é, de facto, um merecido testemunho ao poeta. Pelo grau de qualidade e inovação em que a sua poética se expressa, também a nível cívico, recorrendo, para o efeito, à sátira, ao escárnio, ao riso, à ironia. Tal como refere Manuel Maria, David F. Rodrigues não prescinde, nestes poemas, de exercer o seu direito e dever de Cidadania, integrando-se, assim, no combate político que urge continuar, atingindo o centro do mal da sociedade em que vivemos, nele incluindo os profissionais da política.
    Ler e divulgar "estes cantares fez & som escarnhos d'ora" (já em 2.ª tiragem), é um ato de cultura, de apreço e de estímulo que o poeta e escritor David F. Rodrigues merece.

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    1. Muito obrigado Margarida Vilarinho, pelo teu extenso quão criticamente generoso comentário.
      Estou certo de que «os críticos e ensaístas» que sobre este meu livrinho «já se pronunciaram» - com justo destaque, neste “post”, para o Manuel Maria - te hão de estar agradecidos, ao reconhecer-lhes uma «competência [de análise] fundada e fundamentada, no saber e na experiência das artes literárias.»
      Quero agradecer-te, agora em meu nome pessoal, as elogiosas referências (excessivas, evidentemente) que teces em torno dos meus poemas (em particular de «estes cantares») e da minha modesta capacidade poética. Referências que leio como uma responsabilização e um estímulo, de que prometo não desistir e continuar a desenvolver, estudando, paralelamente, as poéticas teóricas e práticas. E mais e novos exercícios de redação de poemas escrevendo. Agora (e só agora) que o posso fazer a tempo inteiro.
      Agradeço-te, por fim, Margarida, o apelo cultural e cívico que fazes à leitura e divulgação de «estes cantares fez som & escarnhos d’ora». Sendo certo que o primeiro leitor e crítico de um texto literário é (deve ser) o seu próprio autor, não menos certo é que, uma vez publicado, esse texto aguarda sempre a atenção cuidada dos leitores, seus principais destinatários. E, apesar de fisicamente ausente, o autor agradece sempre, mesmo em silêncio, este processo de comunicação, especial, por unidirecional. Cordial abraço! David F. Rodrigues.

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