IV. Frutos da Terra e do Homem
Em torno da interrogação na poesia de Jorge de Sena
[Fica, neste post e seguintes, estudo inicialmente publicado (apenas texto), em
1998,
na revista Mealibra. Cfr. RODRIGUES,
1998.]
Por
que pergunto, se já sei por quê?
SENA, 19772: 210
O recurso à interrogação é uma constante na poesia de
Jorge de Sena. Raro é o poema em que o poeta não apresenta, pelo menos, uma
realização interrogativa, não faltando poemas totalmente constituídos,
construídos, por uma sequência de interrogações. O próprio Jorge de Sena,
sempre leitor e crítico atento também da sua própria arte poética, o afirma:
[…] acontece que o homem –
se pode viver e criar abstracções – é pelo rosto e pelos seus gestos, e pelo
que ele, com o olhar transfigura, que podemos, interrogativamente, incertamente, inquietamente, angustiadamente, conhecer-lhe a vida. E, se não fora a poesia
olhando a História, nenhuma vida em verdade conheceríamos, nem a nossa própria.
(SENA, 19882: 157. Destaque meu.)
Ou, então, no poema
“DIZ-ME, SILÊNCIO…”
Diz-me, silêncio, em
ruídos permanentes
singelamente confusos
primitivos –
que mão estender à voz
que ouvida não
fala comigo ou com
ninguém, silente:
Devo tocar como quem
chama e pede?
Ou agarrar o que não
fala ainda
senão por gestos quase
imperceptíveis?
Esperarei perguntas sem
resposta?
Responderei perguntas
não faladas?
Diz-me, silêncio, em
ruídos de que és feito,
como entender-te quando
és corpo humano? [SENA, 19892: 217]
E
no IV soneto da «Heptarquia do Mundo Ocidental», que continua os três sonetos
anteriores, todos eles marcados também por várias interrogativas, onde a
própria construção e organização do poema é já de si reveladora do espírito
inquieto, interrogativo, angustiado e dialéctico do poeta.
Mas que se trai traindo?
Que traís
quando trocais por nada
o nada que é
ser-se fiel ao que
passou por nós?
A mim traís? A vós? Aos
nomes falsos
em que se oculta o roubo
do existir?
E que passou? Que não
passou? Que foi
roubado ou não roubado a
cada instante?
Traís a cada instante?
Que traís?
Fiel eu serei sempre a
uma resposta.
Mas, respondendo, tendo
estas palavras
que negam outras como
quem se nega
a não negar senão o que
não tem,
responderei àquilo que
pergunto.
E sei que sou fiel não
perguntando. [SENA, 19892: 41]
Apesar
desta frequente utilização da interrogação, apenas alguns críticos notaram,
apenas anotaram, esta indelével marca da poesia seniana. Entre os inúmeros
estudos dedicados à obra do autor, nenhum encontrámos que trate
desenvolvidamente esta problemática. E entre aqueles que apenas o (a)notam, só
dois o fazem explicitamente.
Frederick G. Williams, amigo e
colega do poeta na Universidade de Santa Bárbara, Califórnia, refere a
utilização da «pergunta retórica», como uma das «influências barrocas» na poesia
de Sena, para depois, ao proceder ao levantamento dos recursos estilísticos,
verificar que ela «aparece repetidas vezes dentro do mesmo poema em quase todos
os poemas dos livros todos». O crítico apresenta, de seguida, alguns exemplos e
por aí se fica. [Cfr. AA. VV., 1981: 111 e 115]
Outra referência, breve, mas
procurando dar já uma interpretação semântica e pragmática da interrogação
seniana, encontra-se em Fátima Freitas Morna:
Lentamente, ao longo dos anos e dos textos, a poesia
de Jorge de Sena vai cumprindo a sua vocação especial de voz entre vozes.
Depois de uma certa euforia declarativa, a sua modulação indagativa encontra a
magistral formulação do poema “Tendo lido uma carta…”:
“Apenas sou pergunta,
e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.”
Poesia
que interroga, voz funcional ocupando um lugar no mundo, sempre oficiante,
sempre nostálgica do diálogo, ansiosa do grande espectáculo que, enquanto
discurso, é. [MORNA,
1985: 31-32]
Poesia
interrogativa e interrogante, pois, que é um permanente questionar o homem e o
mundo, o sujeito poético e a poesia, as suas inter-relações, as suas
interacções. Com interrogações retóricas, como não poderia deixar de ser.
Porque as outras, as interrogações literais, exigem resposta imediata que não
fomenta o diálogo nem o questionamento. Interrogações retóricas, porém, não
apenas no sentido tradicional de “figura de paixão”, mas também e sobretudo
como figura de conflito, ou seja, de pensamento retórico original (originário),
que provoca o dizer e o pensar, os desenvolve e organiza em discursos.
[…] o moderno
pensamento retórico é um pensamento heurístico, isto é, inventor e descobridor, mas sem verdades para inventar nem
para descobrir. Sua heurística é tão-somente uma heurística de instrumentos
para pensar e para falar. [PLEBE & EMANUELE, 1992: 185-186]
[Continuará]
Bibliografia (Apenas a referida nesta
parte).
AA. VV.,
1981: Studies on Jorge de Sena [...].
Santa Barbara: Bandanna Books.
MORNA, F. F., 1985: Poesia de Jorge de Sena. Lisboa:
Comunicação.
PLEBE, A. & EMANUELE, P., 1992 (1989): Manual de Retórica. São Paulo: Martins Fontes (Trad. de Eduardo
Brandão, revista por Neide Luzia de Rezende).
RODRIGUES, D. [F.], 1998: «Em torno da interrogação na poesia de
Jorge de Sena». Mealibra (Revista de
Cultura), n.º 1/2, série 3. Viana do Castelo: Centro Cultural do Alto
Minho; pp. 21-27.
SENA, J.,
19772: Poesia I. Lisboa:
Moraes.
----------,
19882: Poesia II. Lisboa:
Edições 70.
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