IV. Frutos da Terra e do Homem
Em torno da interrogação na poesia de Jorge de Sena [II]
[Fica, neste post e seguintes, estudo inicialmente publicado (apenas texto), em 1998,
na revista Mealibra. Cfr. RODRIGUES, 1998.]
[Continuação do post anterior, onde, por um lado, apresento
a pertinência da interrogação na poesia do poeta e, por outro, indico estudos
que se lhe referem. Assim, continuando:]
Recorde-se,
sumariamente, as características da interrogação, também para distinguir a
pergunta literal da pergunta retórica.
Em
sentido literal, uma interrogação, prosodicamente realizada numa frase com
determinada entoação ascendente (representada na escrita pelo respectivo sinal de
pontuação) é «a expressão de um tipo de acto ilocutório directivo, através do
qual o LOC [locutor] pede ao ALOC [alocutário] que lhe forneça uma informação
de que não dispõe.» [MATEUS et al., 19892:
237]
Trata-se,
portanto, de um acto interpessoal, de um intercâmbio dialogal. De um lado,
temos um locutor que interroga e que, ao fazê-lo, deseja obter uma informação;
de outro, temos um outro alocutário que, em princípio, se presume ser capaz de
informar e por isso de responder. A própria noção de pergunta inclui, portanto,
a de resposta. "Quem pergunta quer saber", sintetiza o velho ditado.
A
característica principal de uma interrogativa literal é, pois, a de obrigar o
destinário a uma resposta, estabelecendo, assim, entre os interlocutores, uma
espécie de obrigatoriedade, como esclarece Ducrot:
Se não se faz
intervir esta ideia de uma obrigação de resposta imposta ao destinatário, o
enunciado [...] já não é compreensível como uma pergunta, mas apenas como a
marca de uma incerteza ou de uma curiosidade, ou ainda como forma retórica de
exprimir a sua incredulidade [...]. O que caracteriza a pergunta [literal]
enquanto tal, é a exigência de uma resposta. [DUCROT, 1984b: 445]
Como
se sabe, nem todas as perguntas literais, totais ou parciais, obrigam a uma
resposta verbal. Há perguntas que são ordens, afirmações ou pedidos indirectos
de uma acção, sejam elas acompanhadas ou não de formas de cortesia. A sua
ocorrência tem a ver com a problemática dos actos ilocutórios, os quais estão
intimamente ligados aos mecanismos de construção e explicação do implícito. [Cfr. KERBRAT-ORECCHIONI, 19862]
Valorizamos
o carácter de obrigatoriedade de resposta que toda a pergunta literal institui,
porque a chamada pergunta retórica não inclui, na sua definição, essa obrigatoriedade,
antes a dispensando.
Não
é só nos discursos ditos literários que se encontra esta forma particular de
interrogação. Também no falar quotidiano. Também e sobretudo nos discursos
políticos, religiosos e publicitários, naqueles onde o orador se substitui ao ouvinte, na formulação dos seus problemas,
incertezas, paixões, conflitos, questões, desejos, sejam eles conscientes ou
inconscientes.
A
retórica, define Meyer, «c'est la
négociation de la distance entre des hommes, à propos d'une question, d'un
problème.» [MEYER, 1993: 22-23]
No
campo da chamada «retórica dos conflitos», como no campo da chamada «retórica
das paixões»,
[...] fazer uma pergunta para a qual
já se sabe que não há possibilidades de opção entre responder afirmativa ou
negativamente, já que a própria formulação do problema prefigura uma das suas
respostas (ou exclui ambas), é o artifício que recebe o nome de pergunta
retórica. [PLEBE E EMANUELE, 1992:
63].
O
facto, porém, de não exigir uma resposta, não quer dizer que ela não afecte
tanto aquele que a formula como aquele que a recebe e reformula, ainda que em
níveis e graus diferentes. É o velho problema retórico do ethos, centrado no orador,
e do pathos, centrado no auditório. No meio fica o logos, o discurso, meio que é o meio que
reúne, ou afasta, os interlocutores. Porque uma outra característica da
pergunta retórica é a de ela ser formulada «com fins argumentativos ou como
expressão da avaliação que o LOC faz de um determinado estado de coisas.» [MATEUS et al.,
19892: 238]
Em
termos mais literários, como figura de pensamento e ornato frásico, terá sido
Quintiliano (séc. I) o seu primeiro teorizador. O autor das Instituições Oratórias diz que há interrogatio (os gregos chamavam-lhe erótema, para a distinguir do próblema; este formulava-se para ser
resolvido, ou seja, obter uma resposta; aquele não necessariamente), há figura
de interrogação, para Quintiliano, «quando se fizer, não para saber alguma
cousa, mas para instar, e intimar mais o que se diz». E o retórico romano dá
como exemplo, entre outros, o célebre «Até quando, Catilina, abusarás da nossa
paciência?». E comenta, retoricamente interrogando: «Porque quanto mais fogo
tem isto, dito deste modo, do que se disséssemos? Ha muito tempo que abuzas da nossa paciencia.» E Jerónimo Soares
Barbosa, autor da tradução das Instituições
que consultamos, comenta, em nota, que as interrogações «são figuradas» quando
«tem ficção. O orador não he ignorante do que pergunta, mas finge-se tal para
dar mais fogo, e acção ao pensamento.» [QUINTILIANO, 1836: 186-187, e 186, nota (e)]
Lausberg,
que sistematiza em Elementos de Retórica
Literária os aspectos essenciais da retórica clássica, refere, baseado no Górgias de Platão, que a pergunta
retórica
[...] fustiga os afectos, por meio da
evidência de que é desnecessária uma formulação interrogativa. Por isso, não se
espera uma resposta a essa pergunta, pois que ela é, já por si, a formulação
próxima da exclamatio, de uma
afirmação. [LAUSBERG, 19823: 259]
Tradicionalmente, e resumindo, a
interrogação retórica literária é entendida como uma «figura de paixão que
consiste em interpelar o leitor ou o ouvinte, dando àquilo que é, de si,
afirmativo uma forma de pergunta.» Por isso, «o leitor é provocado e levado a
dar, no seu íntimo, uma resposta de assentimento ao que se lhe propõe.» E
«quando as I[nterrogações] se sucedem, i.
é, quando a I[interrogação] se combina com
a repetição e a gradação, o efeito exprime, ainda com mais urgência, a
intensidade da paixão.» Além disso, é considerada como «a figura rítmica mais
importante do estilo coloquial e do estilo patético», servindo para dar
«relevo e interesse ao que se escreve ou se diz.» [Cfr. MENDES, 1970]
É
pelo facto das interrogações retóricas dispensarem resposta que se diz que
elas ocorrem sobretudo em contextos (o contexto, real ou fictício, é sempre
indispensável à sua concretização), onde os destinatários não têm voz activa. Daí que elas não sejam tão
inocentes como por vezes se pensa, inclusive as literais. Repare-se nesta
advertência de Ducrot:
[...] tendo o ar de respeitar a liberdade do
destinatário, ela [a interrogação, evidentemente] pode, no entanto, impor-lhe
ideias prévias. Particularidade esta que torna suspeitas numerosas
"sondagens de opinião", e que leva a desconfiar também da
"pedagogia interrogativa" de inspiração socrática. Porque as
perguntas do professor afirmarão geralmente tanto quanto perguntam. Daí os
limites da "maiêutica", parto que pode ter certas características de
inseminação. [DUCROT, 1984a: 401]
Bibliografia
(Apenas a referida nesta parte).
DUCROT, O., 1984a: «Pressuposição e Alusão», in AA.VV., 1984: Linguagem-Enunciação. Enciclopédia Einaudi, vol 2. Lisboa IN-CM;
pp. 394-417 (Trad. do art. de Henriqueta Costa Campos).
------------, 1984b: «Actos linguísticos», in AA.VV., 1984: Linguagem-Enunciação. Enciclopédia Einaudi, vol. 2. Lisboa IN-CM;
pp. 439-457 (Trad. do art. de Henriqueta Costa Campos).
KERBRAT-ORECCHIONI, C., 19862:
L'Implicite. Paris: Armand Colin.
LAUSBERG, H., 19823 (1967): Elementos de Retórica Lietrária. Lisboa:
Gulbenkian (Trad. de R.M. Rosado Fernandes).
MATEUS, M H.M et al., 19892: Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa:
Caminho.
MENDES, J., 1970: «Interrogação», in VERBO-Enciclopédia Luso Brasileira de
Cultura, vol 10. Lisboa: Verbo.
MEYER, M., 1993: Questions
de Rhétoriques. Langage, Raison et Séduction. Paris: Librairie Générale
Française (Le Livre de Poche).
PLEBE, A. & EMANUELE, P., 1992 (1989): Manual de Retórica. São Paulo: Martins
Fontes (Trad. de Eduardo Brandão, revista por Neide Luzia de Rezende).
QUINTILIANO, 1836: Instituições
Oratorias. Coimbra (Trad. e notas de Jeronymo Soares Barbosa).
RODRIGUES, D. [F.], 1998: «Em torno da interrogação na poesia de Jorge de Sena». Mealibra (Revista de Cultura), n.º 1/2, série 3. Viana do Castelo: Centro Cultural do Alto Minho; pp. 21-27.
SENA, J., 19772: Poesia I. Lisboa: Moraes.
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