segunda-feira, 12 de maio de 2014

IV. Frutos da Terra e do Homem






Em torno da interrogação na poesia de Jorge de Sena [III]

[Termino, neste post, estudo inicialmente publicado (apenas texto), em 1998,
na revista MealibraCfr. RODRIGUES, 1998.]


      [Continuação do post anterior, onde apresentei uma síntese de natureza teórica, sobre os valores linguísticos e retóricos da interrogação.]

Falámos acima na ausência de voz, voz que a interrogação retórica uma vezes substitui, outras abafará. E a voz leva-nos, de novo, à poesia de Sena, mais precisamente àquele poema de onde retirámos o verso que é epígrafe deste tra­balho. Poema já referido, também, na citação de Fátima Morna, e que a seguir se apre­senta na inte­gridade de título e texto:

TENDO LIDO UMA CARTA ACERCA DE UM SEU LIVRO DE POE­MAS, QUE OFERECERA

Por que entristeço ao ler o que de meus
versos escrevem se não é de mim
que escrevem?
Será que chora em mim o que meus versos foram
antes de ser meus?
Por que pergunto, se já sei por quê?

Escuto longamente, leio, espero,
e o poema é voz de toda a gente, todos eles, que,
não se tendo ouvido, não a sabem sua.
E vêm chorar em mim o coração traído,
a música perdida em distracções urgentes,
umas palavras que ninguém falou.

Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta,
e, sendo eu, me esqueço ao perguntar. [SENA, 19772: 210]

A vários títulos nos parece importante este poema de Sena. Foquem-se alguns. Comecemos pelas interrogações. São três, e seguidas, e iniciam o poema. O poema nasce sob o signo da inter­rogatividade. Um problema apoquenta, aparentemente, o poeta.
            A primeira é constituída por três versos, a segunda por dois, a terceira por um. Que nos dirá esta organização vérsica? Em primeiro lugar, que há uma gradação a nível da forma. Havê-la-á também a nível do conteúdo?
            A primeira interrogação é a verificação de um facto, de um estado de es­pírito: o poeta fica triste porque escrevem acerca dos seus ver­sos e não acerca dele, poeta.
            A segunda é a razão/reconhecimento desse facto: o que chora no poeta é aquilo que os seus versos foram antes de serem dele.
            Para quê, então, a terceira pergunta (que como retórica definição de pergunta retórica se pode entender)? Para chegar às causas e à explicação última do ser poeta. É o que dizem a se­gunda e a terceira estrofes.
            Perguntas retóricas, sim, mas aliadas a outras figuras, a gradação e o raciocínio, sobretudo. [QUINTILIANO, 1836: 105-115; LAUSBERG, 19823: 108-109]. Poderia este poema começar pela se­gunda ou terceira interrogação?... Teríamos, nesse caso, outros poe­mas, não este.
            Este poema é um silogismo ou, pelo menos, um entimema (thymós, «impressão emotiva ») [PLEBE & EMANUELE, 1992: 54; cfr. tb. LAUSBERG, 19823: 219-221]. Repare-se no final do poema que, apesar da contradição que parece ter com o início, inclusiva­mente nos aparece marcado pelo conector "pois", que interpreta­mos, por um lado, com valor de conclusiva e por outro com valor de causal ou explicativa: «Não entristeço, pois. Apenas sou per­gunta, / e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.»
            Repare-se, ainda, na função demiúrgica, de medium, que o poe­ta assume no poema, como porta-voz da "tribo". Quem fala não sou eu: a minha voz é a voz daqueles que não têm voz, é o que, parafraseando, ele diz, como o poema o diz. A propósito:

Nos anos 80, o protagonismo do texto invadiu a própria filosofia. Hoje vai abrindo a idéia de uma textuali­dade geral que diz respeito em igual medida tanto à lite­ratura quanto à filosofia, de modo que as técnicas e os ar­tifícios textuais da primeira não diferem, em substância, das técnicas e dos artifícios da segunda.(...)
            Mas, se o texto se coloca hoje como diafragma entre a arte de escrever e a arte de pensar, então o rhétoricien moderno não pende mais nem para o lado dos artifícios es­téticos, nem para o das concepções filosóficas: ele pode surgir como o moderno demiurgo intelectual, que conhece a arte mais essencial, a de manipular o texto. Nesse sentido, ele tem um pé numa estética criadora (...) e outro numa filosofia não metafísica: de um lado é perito em signos literários, de outro em seus conteúdos filosóficos. [PLEBE & EMANUELE, 1992: 184]

            Por isso, os autores desta citação (professores de Filosofia em universidades italianas) terminam o seu livro dizendo: «Há estética e há filosofia onde o texto se presta a ser manipulado retoricamente», em vez da frase com que Max Bense abre o seu Kleine Texttheorie [1969]: «Há poesia onde palavras diferentes se encontram pela primeira vez.» [Id.: 186]
            Mas o poema «Tendo lido uma carta...» revela também dois as­pectos, tidos hoje como característicos da arte literária contem­porânea: o apagamento e o distanciamento do sujeito poético em relação ao seu próprio produto estético e, em conse­quência, a defesa da autonomia desse objecto, atitude que deve ser praticada também pela crítica, simbolizada aqui pelo even­tual autor da carta.

Voltemos às interrogações de Sena. Desta vez, com o poema

EPÍGRAFE PARA A ARTE DE FURTAR
           
Roubam-me Deus,
outros o Diabo
- quem cantarei?
           
roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros ma roubam
- quem cantarei?
           
sempre há quem roube
quem eu deseje;
e de mim mesmo
todos me roubam
- quem cantarei?
           
roubam-me a voz
quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
- aqui del-rei! [SENA, 19882: 17]
           
Uma interrogativa parcial, três vezes repetida, como re­frão, no final das três primeiras estrofes. Estrofes também elas grada­tivamente constituídas por dois, três e quatro versos. Gradativa­mente também a nível de conceitos, verticalmente colocados

Deus
Diabo
Pátria
Humanidade
Amor (?)
Voz
Silêncio

            O poeta só pede socorro, isto é, só deixará de cantar quando lhe roubarem o próprio silêncio. A liberdade, a todos os níveis, foi sempre a maior luta do poeta. Repete-o frequente­mente.
            Trata-se de uma pergunta retórica, associada à repetição e à gradação, que aliás faz lembrar outras usadas já pelos trovadores e jograis, nomeadamente satíricos. Mas o seu valor é sobretudo irónico, também pelo jogo que constrói e mantém, pelo inesperado do final. Final tanto mais inesperado quanto do ritmo criado pela repetição do refrão interrogativo, três vezes repetido, se espe­raria que continuasse. Não continua e em sua substituição uma ex­clamativa, o grito de socorro e de revolta, que não deixa de ser interrogante, inquietante, incómodo. Prestemos atenção à curva melódica e aos fonemas que constituem os lexemas do refrão, nas duas realizações. Não se fica com a sensação de um toque a rebate crescente?...

            Será necessário lermos mais poemas de Sena para nos aperce­bermos da importância da interrogação na sua poesia, aos vários níveis em que ela se concretiza?... Julgamos que não.
            Gostaríamos, porém, de ler, apenas ler, pelas interrogações que contém, pela reflexões que propõe sobre a interrogatividade da arte, pela importância que a música teve na aparição da poe­sia a Sena

OUVINDO O QUARTETO OP. 131, DE BEETHOVEN

A música é, diz-se, o indizível
por ser de inexprimível sentimento
da consciência, ou um estado de alma,
ou uma amargura tão extrema e lúcida
que passa das palavras para ser
apenas o ritmo e os sons e os timbres
só pelos músicos cientes de harmonia
e de composição imaginados. Mas,
se assim fosse, eles só dos homens
saberiam mover-se nos espaços
que a humanidade abandonada encontra
nos desertos de si. Começariam
onde a expressão verbal não se articula
por impossível. Viveriam sempre
na fímbria estreita à beira da maldade
e do absurdo, como que suspensos
na solidão da morte sem palavras.
Não é, portanto, a música o limite
ilimitado dos limites da linguagem,
para dizer-se o que não é dizível.

Mas, se não é, que dizem lancinates,
neste discreto passeio pelo tempo,
os quatro instrumentos semelhantes
no seu modo de criarem som?
Tão terrível. Sufocante. Doce
ou agridoce desconcerto harmónico.
Que diz? Que diz? Neste contínuo
de temas e andamentos, de tonalidades,
o que se justifica? Que discutem eles?
A sua mesma natureza de instrumentos
e as combinações até ao infinito
de um mecanismo abstracto do imaginar?
Como pode uma coisa que sentimos tão medonha,
tão visionariamente séria e pensativa,
ser irresponsável?

Será que nos diz do aquém, do abaixo,
do infra, do primário, do barbárico,
do animal sem alma e sem razão?
Será que todo este rigor tão belo
é como que a estrutura prévia
de que existimos ao pensar as coisas?
E não a quintessência depurada
de uma estrutura que se consentiu
todo o significar a que as palavras vieram
da analogia nominal e mágica
até à consciência dos universais?
Não há tristeza alguma nesta
vida transformada em puro som,
em homogénea outra realidade?
Não é de angústia este rasgar melódico
da consciência antes de criar-se humana?

De que, portanto, vem este triunfo
que se precipita, contraditório, nas arcadas
dos instrumentos conversando essências?
É simples convenção? É artifício?
Silêncio irresponsável?

Se há mistério na grandeza ignota,
e se há grandeza em se criar mistério,
esta música existe para perguntá-lo.
E porque se interroga e não a nós,
ela se justifica e justifica
o próprio interrogar com que se afirma
não quintessência ela, mas raiz profunda
daquilo que será provável ou possível
como consciência, quando houver palavras
ou quando puramente inúteis forem. [SENA, 19882: 181-182]

  

Bibliografia (Toda a consultada)
AA. VV., 1981: Studies on Jorge de Sena (...). Santa Barbara: Bandanna Books.
DUCROT, O., 1984a: «Pressuposição e Alusão», in AA.VV., 1984: Linguagem-Enunciação. Enciclopédia Einaudi, vol 2. Lisboa IN-CM; pp. 394-417 (Trad. do art. de Henriqueta Costa Campos).
------------, 1984b: «Actos linguísticos», in AA.VV., 1984:  Linguagem-Enunciação. Enciclopédia Einaudi, vol. 2. Lisboa IN-CM; pp. 439-457 (Trad. do art. de Henriqueta Costa Campos).
KERBRAT-ORECCHIONI, C., 19862: L'Implicite. Paris: Armand Colin.
LAUSBERG, H., 19823 (1967): Elementos de Retórica Lietrária. Lisboa: Gulbenkian (Trad. de R.M. Rosado Fernandes).
MATEUS, M H.M et al., 19892: Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Caminho.
MENDES, J., 1970: «Interrogação», in VERBO-Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, vol 10. Lisboa: Verbo.
MEYER, M., 1993: Questions de Rhétoriques. Langage, Raison et Séduction. Paris: Librairie Générale Française (Le Livre de Poche).
MORNA, F. F., 1985: Poesia de Jorge de Sena. Lisboa: Comunicação.
PLEBE, A. & EMANUELE, P., 1992 (1989): Manual de Retórica. São Paulo: Martins Fontes (Trad. de Eduardo Brandão, revista por Neide Luzia de Rezende).
QUINTILIANO, 1836: Instituições Oratorias. Coimbra (Trad. e notas de Jeronymo Soares Barbosa).
RODRIGUES, D. [F.], 1998: «Em torno da interrogação na poesia de Jorge de Sena». Mealibra (Revista de Cultura), n.º 1/2, série 3. Viana do Castelo: Centro Cultural do Alto Minho; pp. 21-27.
SENA, J., 19772: Poesia I. Lisboa: Moraes.
------------ , 19882: Poesia II. Lisboa: Edições 70.
------------ , 19892: Poesia III. Lisboa: Edições 70.

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