O ROSTO,
POESIA DE DAVID
F. RODRIGUES
Cláudio
Lima
David F. Rodrigues (Mato, Ponte
de Lima, 6-3-1949) publicou no início do ano corrente um livrinho de diminuto
corpo mas de excelente qualidade, tanto no apuro gráfico como, sobretudo, na
oferta poética com que nos brinda. Trata-se de o rosto, revelado no mês de fevereiro pº pº pelas edições Eufeme, de Leça da Palmeira.
Já em 2015, com um livro em que
alia uma lúcida e corrosiva dissecação do Portugal de hoje a uma hábil imitação
da nossa poesia medieval – estes
cantares fez & som escarnhos d’ora – (Ed. de A., Viana do Castelo),
saudou-se vivamente o seu “regresso” ao convívio dos poetas seus pares. É que,
desde 1988, ano em que publicou O Que É
Feito de Nós (Límia, Viana do
Castelo), por força de seus afazeres letivos e da sua valorização académica,
deixou a atividade literária em suspenso por quase três longas décadas.
Produziu e publicou, entretanto,
trabalhos de índole científica e pedagógica, associados à preparação do
mestrado (1995) e do doutoramento (2003), no âmbito da Linguística / Teoria do
Texto, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa. As respetivas dissertações Para
a Análise Conversacional da Arca de Noé,
III Classe de Aquilino Ribeiro e Cortesia
Linguística: uma Competência Discursivo-Textual, encontram-se acessíveis em
suporte digital. Alguns trabalhos relacionados, bem como outros de outra
natureza, designadamente os dedicados a Camilo Castelo Branco e Viana do
Castelo, foram divulgados em publicações de especialidade, posteriormente autonomizados
em separatas.
Se a atividade propriamente dita literária, em que tinha demonstrado
inequívocas provas de excelência e regularidade, esteve ausente por dilatado
tempo de prelos e expositores, não se infira um absoluto abandono ou
interrupção de tal prática. Além de aparições esporádicas em obras temáticas de
coautoria, David F. Rodrigues foi arquivando projetos, tópicos, esboços para
futuro aprofundamento e estruturação. A sua passagem à situação de aposentado,
ocorrida em 2010, veio proporcionar-lhe a disponibilidade de tempo e de
espírito requerida para dar corpo e divulgação a tais escritos embrionários.
…
E assim, é-nos grato saudar e
proveitoso usufruir (d)esta recolha poética, pequena mas substancialmente rica;
este rosto composto de algumas
máscaras em que o Autor se expõe e ao mesmo tempo se dá ao fingimento, segundo
a estratégia insincera preconizada por Pessoa e o desdobramento da
personalidade na dicotomia eu / o outro, experimentado por Mário de Sá-Carneiro.
Regredindo no tempo, e consultando Frei Francisco de S. Luís, o Cardeal
Saraiva, religioso beneditino, filólogo e linguista entre os mais competentes
da sua época, egrégia figura limiana, no primeiro tomo da sua obra Ensaio sobre alguns Synonymos da Lingua
Portugueza (1), ao observar as gradações ou nuances semânticas entre o grupo vocabular formado por cara – rosto – semblante – face – vulto -, opina que “rosto tem uma
significação mais ampla; e parece exprimir a parte dianteira, que é justamente
a mais saliente, a que mais aparece, ou primeiro se adverte, tanto no homem,
como em outros objectos.” (págs 25 / 26)
É, com efeito, através do rosto
que o ser humano, e de um modo especial o poeta, vê e interioriza; se emociona
e se maravilha ou se autoflagela e desespera, consoante os estados de alma que
a realidade circundante lhe impõe. Ele é o espelho, mesmo se baço, mesmo quando
poliédrico, onde aflui a substância magmática do nosso eu profundo, desagua o caudal
tumultuoso de sentimentos, emoções, sensações e volições expressos em traços de
serenidade, crispação, dúvida, angústia, etc. No que ao ato criador concerne, o
rosto o anuncia em júbilo pela palavra descoberta e transformada em fonte de
emanação do ser, no seu estado de atualização e contingência, mas também de
porfia ganha no superar dos obstáculos e limitações impostos por naturais
constrangimentos da humana condição.
Pretendem estas prévias
considerações enquadrar o rosto de
David F. Rodrigues num plano ou plataforma de legibilidade poética. Curiosamente
o lexema que batiza o livro aparece duas vezes apenas no conjunto de 23 textos:
no 1.º: “se um dia der // a minha vida um livro / uma só página há de ter // o
rosto” (1. Pág. 9) e no último: ”quando um dia inscrever / o meu poema na
pétala mais breve / da mais simples flor de incenso // consentirei que ao posto
/ de poeta me dês rosto” (23. Pág. 35). É num futuro condicional, portanto, que
o poeta projeta o pleno alcance do seu ideal. Citando o pessoano Alberto
Caeiro, David F. Rodrigues pode dizer que “viu como um danado”, porque sendo
genuinamente lírica, a sua poesia é acentuada e recorrentemente de imersão no
tempo e na circunstância; veicula uma visão
desencantada e denunciadora de uma sociedade contemporânea órfã de
referências mobilizadoras, vazia de crenças, mergulhada num pântano de vilanias
e corrupções.
Parabolicamente, vemo-lo na pele
de um agricultor impotente perante a sua granja inçada de pragas e ervas
daninhas, invadida por predadores: “toupeiras ratos e outros males”; “mal chega
o mês da colheita / já bicho de avaro bico e boca insatisfeita / saciado está
em me fazer desfeita // resta-me então o restolho rasteiro / memória dos grãos
que lanço à eira / com destino incerto no espigueiro” (9. Pág. 17) Sendo
metaforicamente agrícola, a poesia acaba por ser alimento. Para David F.
Rodrigues, na senda de Natália Correia (2), ela “é para comer”, no sentido em que entra no processo alimentar do
nosso espírito; “é com poucas e vulgares palavras / como géneros de pura
subsistência / que cuido e preparo os alimentos / que maior prazer à língua me
dão // é na irrepetível e cuidada sintaxe / dos seus aromas texturas e cores /
selecionados com persistência / que verso a verso discurso a refeição // busco
só parcos e refinados sabores” (4. Pág. 12)
Noutra perspetiva, poderemos
falar numa relação amor / desamor insuperável, experimentado no limite de um
discurso que sempre fica aquém do desejado, provocando estados de ansiedade e
angústia. Se é desígnio e ambição da poesia iluminar o mundo com a mais pura
claridade que dorme no interior da palavra, a atitude do verdadeiro poeta nunca
é triunfalista, antes reveladora de uma certa impotência e frustração. Se
“escrever é um suplício”, como afirmou o grande romancista norte-americano
Philip Roth recentemente falecido, escrever poesia é-o duplamente, na medida em
que porfia conduzir a palavra e sua semântica a níveis de leitura múltiplos e
sobrepostos, inesgotáveis de desafio e sedução. Confessa o Autor: “a mim a
poesia faz-me / um mal terrível vício / contraído na juventude / incorrigível
devora-me // noite e dia horas a fio / sem descanso”. (13. Pág. 23)
Para aqueles que ligeiramente a
tratam, levianamente se consideram seus representantes legítimos e
credenciados, exibindo fátua mediocridade e prosápia, tem David F. Rodrigues um
conselho sábio ao mesmo tempo que pleno de mordacidade: “para busto teres na
praça / não basta rimares de graça // precisas doutra resposta / evita pôr a
bota na bosta // nunca terás o que pedes / cheirando assim como fedes” (16.
Pág. 28) Ao contrário, pratica ele uma atitude de humilde expetativa e
perseverança, ciente de que resta a cada poeta a possibilidade de lançar uma
minúscula réstia de luz sobre a opacidade e o desconcerto do mundo; aquela
lábil faúlha que resulta do espanto de um olhar-ver-penetrar os fenómenos com o
propósito de atingir a mais profunda essência das coisas, o mais velado rosto
do mistério. “mas o que é e para que serve / hoje a poesia me perguntas // não
sei nunca saberei / com certezas responder-te (…)”. (20. Pág. 32)
Advirta-se, a encerrar este breve comentário, que um leitor menos familiarizado com os aspetos formais da nossa poesia de hoje achará na estrutura de o rosto algo de displicente se não de caótico. Um equívoco, naturalmente. Estes poemas foram criteriosamente elaborados; evidenciam disciplinada contensão, originalidade construtiva, domínio perfeito das figuras de estilo e dos mais sugestivos recursos linguísticos. Caraterísticas que postulam uma leitura lenta e atenta, realizada como quem saboreia a mais deliciosa iguaria.
(1) – S. Luís, Frei Francisco de – Ensaio sobre alguns Synonymos da Lingua
Portugueza – 2 volumes de 254 e 228 pp – Ed. Typ. Commercial de G. Delius,
Santos – 1856. A 1.ª ed. é de 1821.
(2) – Correia, Natália – Poema “A defesa do poeta” em Poesia Completa – Ed. Dom Quixote,
Lisboa, 1999.
maio de 2018
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OBS2. – Acesso a outras opiniões e/ou recensões críticas ao livro, neste blogue, sob a etiqueta «o rosto».
OBS3. - De o rosto, foi lançada, em 16-07-2018, a 2.ª edição, pela mesma editora (Eufeme).
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