david f. rodrigues regressa à poesia com
estes cantares fez & som escarnhos d’ora*
José Manuel Mendes
Desde 1988 que david f. rodrigues cuidava com
desvelo do seu silêncio editorial. Escolhera, aliás, entre instantes de
recepção feliz, a via para a sua construção, fundida nos destinos da docência,
antes e após o doutoramento.
Regressa
agora com estes cantares fez & som
escarnhos d’ora, colectânea que, do título ao conjunto das opções temáticas
e de modulação dos versos, restitui veios profundos do trovadorismo, no
segmento em que a relação com o tempo e a realidade concretos se torna
decisiva. Ou, se assim se preferir, inscreve a actualidade, o que no
contemporâneo é presente com acento agudo, numa linhagem mutacional, unindo
águas (permito-me a metáfora) porventura em dispersão e atritividade.
O
livro traz em si o traço da corrosão mediante instrumentos que percorrem,
recorrem, humor e sarcasmo, uma multivalência da ironia, o burlesco, o erótico,
a pústula colectiva das injustiças, os registos disfémicos até à ferida. Que é,
não nos iludamos, de todos nós:
ou, como que ao acaso da leitura:
“casa roubada
troikas à porta
(…)
troika
por troika
fica-se sempre troikado”;
ou, como que ao acaso da leitura:
“é por
teres sido
mediterrâneo
lago privado do poderoso
império
que persistes
em ser
hoje este louco mar~
conhecido só por tenebroso
cemitério”.
Ao
apurado conhecimento da língua (a que as práticas de investigação académica
conferiram peculiares horizontes) associa o poeta marcadores de melodia e
ritmo, a meu ver, assinaláveis. A tradição clássica, música de câmara sobretudo
e as sugestões da pop ou do rap, mais recitativo e turbulento, colam-se, num
processo que se afigura consciente, ao decurso / discurso de não poucas das
sequências que se nos deparam. Ou serei eu, numa livre aproximação
desconstrutiva, a acolhê-las de tal modo.
Dois
momentos (e toco, canto, invento percussões onde se me impõem). “a minha
próxima residência por última terá / apenas dois candelabros de pé alto e focos
/ de luz azuis como dois ramos de flores selvagens”. Ouvem-se, oiço eu, o
piano, o sopro melancólico do violoncelo, a orquestra. Em contraposição,
insinuam-se a batida, os ingredientes do dizer na escala dos tons médios em
passagens desta estirpe:
“banco
mundial contra a fome
contra a fome mundial
banco
mundial
banco contra a fome
contra a fome banco
mundial
a fome
mundial contra banco
contra banco mundial
a fome.”
“banco
mundial contra a fome
contra a fome mundial
banco
mundial
banco contra a fome
contra a fome banco
mundial
a fome
mundial contra banco
contra banco mundial
a fome.”
A
oralidade, procurada com finura, faz parte do resto, o todo a que chamo resto
na economia da enunciação: comunicabilidade e garridice, ligeireza, a ligeireza
amiúde aparente de certos temperos no frasear e vis (inter)locutória,
regionalismo e inclinação sentenciosa, o engenho de esconder e revelar.
Na
arquitectura do volume nada nasceu, pois, na mão do imponderado. Nem os
elementos peritextuais, as citações de trovadores e nomes cimeiros da
literatura a que pertencemos, Airas Nunes e José Saramago, Martim Soares e
Camões e Vasco Graça Moura.
Deixo uma das chaves para o enigma que toda a
poesia é. Rente à porta, que porta?, saúde, como os amigos saudarão, este
retorno de uma voz guardada ao fundo de um exílio. Um exílio quebrado. Em boa
hora.
* Síntese da apresentação do livro, em Braga, na
Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, no dia 18-12-2015.
Foi uma apresentação brilhante, com a sabedoria fundamentada de José Manuel Mendes, a fazer jus aos teus cantares que são uma obra prima de rigor criativo inusitado.
ResponderEliminarMuito obrigado, Isabel. Estiveste presente - tu e o António, recordo - e até leste um dos meus exercícios poéticos. Abraços!
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