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segunda-feira, 23 de julho de 2018

O ROSTO,
POESIA DE DAVID F. RODRIGUES



                                                         Cláudio Lima




David F. Rodrigues (Mato, Ponte de Lima, 6-3-1949) publicou no início do ano corrente um livrinho de diminuto corpo mas de excelente qualidade, tanto no apuro gráfico como, sobretudo, na oferta poética com que nos brinda. Trata-se de o rosto, revelado no mês de fevereiro pº pº pelas edições Eufeme, de Leça da Palmeira.

Já em 2015, com um livro em que alia uma lúcida e corrosiva dissecação do Portugal de hoje a uma hábil imitação da nossa poesia medieval – estes cantares fez & som escarnhos d’ora – (Ed. de A., Viana do Castelo), saudou-se vivamente o seu “regresso” ao convívio dos poetas seus pares. É que, desde 1988, ano em que publicou O Que É Feito de Nós (Límia, Viana do Castelo), por força de seus afazeres letivos e da sua valorização académica, deixou a atividade literária em suspenso por quase três longas décadas.

Produziu e publicou, entretanto, trabalhos de índole científica e pedagógica, associados à preparação do mestrado (1995) e do doutoramento (2003), no âmbito da Linguística / Teoria do Texto, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. As respetivas dissertações Para a Análise Conversacional da Arca de Noé, III Classe de Aquilino Ribeiro e Cortesia Linguística: uma Competência Discursivo-Textual, encontram-se acessíveis em suporte digital. Alguns trabalhos relacionados, bem como outros de outra natureza, designadamente os dedicados a Camilo Castelo Branco e Viana do Castelo, foram divulgados em publicações de especialidade, posteriormente autonomizados em separatas.
Se a atividade propriamente dita literária, em que tinha demonstrado inequívocas provas de excelência e regularidade, esteve ausente por dilatado tempo de prelos e expositores, não se infira um absoluto abandono ou interrupção de tal prática. Além de aparições esporádicas em obras temáticas de coautoria, David F. Rodrigues foi arquivando projetos, tópicos, esboços para futuro aprofundamento e estruturação. A sua passagem à situação de aposentado, ocorrida em 2010, veio proporcionar-lhe a disponibilidade de tempo e de espírito requerida para dar corpo e divulgação a tais escritos embrionários. 


E assim, é-nos grato saudar e proveitoso usufruir (d)esta recolha poética, pequena mas substancialmente rica; este rosto composto de algumas máscaras em que o Autor se expõe e ao mesmo tempo se dá ao fingimento, segundo a estratégia insincera preconizada por Pessoa e o desdobramento da personalidade na dicotomia eu / o outro, experimentado por Mário de Sá-Carneiro. Regredindo no tempo, e consultando Frei Francisco de S. Luís, o Cardeal Saraiva, religioso beneditino, filólogo e linguista entre os mais competentes da sua época, egrégia figura limiana, no primeiro tomo da sua obra Ensaio sobre alguns Synonymos da Lingua Portugueza (1), ao observar as gradações ou nuances semânticas entre o grupo vocabular formado por cararosto – semblante – face – vulto -, opina que “rosto tem uma significação mais ampla; e parece exprimir a parte dianteira, que é justamente a mais saliente, a que mais aparece, ou primeiro se adverte, tanto no homem, como em outros objectos.” (págs 25 / 26)

É, com efeito, através do rosto que o ser humano, e de um modo especial o poeta, vê e interioriza; se emociona e se maravilha ou se autoflagela e desespera, consoante os estados de alma que a realidade circundante lhe impõe. Ele é o espelho, mesmo se baço, mesmo quando poliédrico, onde aflui a substância magmática do nosso eu profundo, desagua o caudal tumultuoso de sentimentos, emoções, sensações e volições expressos em traços de serenidade, crispação, dúvida, angústia, etc. No que ao ato criador concerne, o rosto o anuncia em júbilo pela palavra descoberta e transformada em fonte de emanação do ser, no seu estado de atualização e contingência, mas também de porfia ganha no superar dos obstáculos e limitações impostos por naturais constrangimentos da humana condição.

Pretendem estas prévias considerações enquadrar o rosto de David F. Rodrigues num plano ou plataforma de legibilidade poética. Curiosamente o lexema que batiza o livro aparece duas vezes apenas no conjunto de 23 textos: no 1.º: “se um dia der // a minha vida um livro / uma só página há de ter // o rosto” (1. Pág. 9) e no último: ”quando um dia inscrever / o meu poema na pétala mais breve / da mais simples flor de incenso // consentirei que ao posto / de poeta me dês rosto” (23. Pág. 35). É num futuro condicional, portanto, que o poeta projeta o pleno alcance do seu ideal. Citando o pessoano Alberto Caeiro, David F. Rodrigues pode dizer que “viu como um danado”, porque sendo genuinamente lírica, a sua poesia é acentuada e recorrentemente de imersão no tempo e na circunstância; veicula uma visão desencantada e denunciadora de uma sociedade contemporânea órfã de referências mobilizadoras, vazia de crenças, mergulhada num pântano de vilanias e corrupções.
Parabolicamente, vemo-lo na pele de um agricultor impotente perante a sua granja inçada de pragas e ervas daninhas, invadida por predadores: “toupeiras ratos e outros males”; “mal chega o mês da colheita / já bicho de avaro bico e boca insatisfeita / saciado está em me fazer desfeita // resta-me então o restolho rasteiro / memória dos grãos que lanço à eira / com destino incerto no espigueiro” (9. Pág. 17) Sendo metaforicamente agrícola, a poesia acaba por ser alimento. Para David F. Rodrigues, na senda de Natália Correia (2), ela “é para comer”, no sentido em que entra no processo alimentar do nosso espírito; “é com poucas e vulgares palavras / como géneros de pura subsistência / que cuido e preparo os alimentos / que maior prazer à língua me dão // é na irrepetível e cuidada sintaxe / dos seus aromas texturas e cores / selecionados com persistência / que verso a verso discurso a refeição // busco só parcos e refinados sabores” (4. Pág. 12)

Noutra perspetiva, poderemos falar numa relação amor / desamor insuperável, experimentado no limite de um discurso que sempre fica aquém do desejado, provocando estados de ansiedade e angústia. Se é desígnio e ambição da poesia iluminar o mundo com a mais pura claridade que dorme no interior da palavra, a atitude do verdadeiro poeta nunca é triunfalista, antes reveladora de uma certa impotência e frustração. Se “escrever é um suplício”, como afirmou o grande romancista norte-americano Philip Roth recentemente falecido, escrever poesia é-o duplamente, na medida em que porfia conduzir a palavra e sua semântica a níveis de leitura múltiplos e sobrepostos, inesgotáveis de desafio e sedução. Confessa o Autor: “a mim a poesia faz-me / um mal terrível vício / contraído na juventude / incorrigível devora-me // noite e dia horas a fio / sem descanso”. (13. Pág. 23)
Para aqueles que ligeiramente a tratam, levianamente se consideram seus representantes legítimos e credenciados, exibindo fátua mediocridade e prosápia, tem David F. Rodrigues um conselho sábio ao mesmo tempo que pleno de mordacidade: “para busto teres na praça / não basta rimares de graça // precisas doutra resposta / evita pôr a bota na bosta // nunca terás o que pedes / cheirando assim como fedes” (16. Pág. 28) Ao contrário, pratica ele uma atitude de humilde expetativa e perseverança, ciente de que resta a cada poeta a possibilidade de lançar uma minúscula réstia de luz sobre a opacidade e o desconcerto do mundo; aquela lábil faúlha que resulta do espanto de um olhar-ver-penetrar os fenómenos com o propósito de atingir a mais profunda essência das coisas, o mais velado rosto do mistério. “mas o que é e para que serve / hoje a poesia me perguntas // não sei nunca saberei / com certezas responder-te (…)”. (20. Pág. 32)

Advirta-se, a encerrar este breve comentário, que um leitor menos familiarizado com os aspetos formais da nossa poesia de hoje achará na estrutura de o rosto algo de displicente se não de caótico. Um equívoco, naturalmente. Estes poemas foram criteriosamente elaborados; evidenciam disciplinada contensão, originalidade construtiva, domínio perfeito das figuras de estilo e dos mais sugestivos recursos linguísticos. Caraterísticas que postulam uma leitura lenta e atenta, realizada como quem saboreia a mais deliciosa iguaria. 

(1) – S. Luís, Frei Francisco de – Ensaio sobre alguns Synonymos da Lingua Portugueza – 2 volumes de 254 e 228 pp – Ed. Typ. Commercial de G. Delius, Santos – 1856. A 1.ª ed. é de 1821.
(2) – Correia, Natália – Poema “A defesa do poeta” em Poesia Completa – Ed. Dom Quixote, Lisboa, 1999.
                                                                                                                                                maio de 2018


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OBS1. - Publicado em Ponte de Lima: do passado ao presente, rumo ao futuro! (n.º 4, julho 2018), pp. 124-127 [N.º dedicado ao Poeta António Feijó. Capa ao lado].

OBS2. – Acesso a outras opiniões e/ou recensões críticas ao livro, neste blogue, sob a etiqueta «o rosto».

OBS3. - De o rosto, foi lançada, em 16-07-2018, a 2.ª edição, pela mesma editora (Eufeme).

sexta-feira, 20 de julho de 2018


O Rosto
Poesia de David F. Rodrigues

Por Cláudio Lima



O rosto, a face. Sinónimos puros ou nem tanto? Dois nomes que proliferam no nosso vocabulário, corrente e poético, denotando certas e subtis distinções de natureza semântica. O nosso filólogo e linguista Frei Francisco de S. Luís, vulgo Cardeal Saraiva, na obra Ensaio sobre alguns Synonymos da Lingua Portugueza, agrupando Cara – Rosto – SemblanteFace – Vulto, opina que, em relação às duas primeiras, «Rosto tem uma significação mais ampla; e parece exprimir a parte dianteira, que é juntamente a mais saliente, ou a que mais aparece, ou primeiro se adverte, tanto no homem, como em outros objectos.» Por sua vez, «face tem seu particular uso quando queremos falar das côres, e de outras propriedades, que se percebem pela superfície dos corpos.» (1856, págs. 25/27) Digamos que face espelha o perfil anatómico, enquanto rosto revela o nosso ser e estar mais profundo e enigmático.

Reportado ao universo poético, o rosto será, assim, uma espécie de percursor da mensagem, a sua embrionária e semioculta expressão. «O rosto com que fita é Portugal» – escreve Fernando Pessoa na Mensagem, referindo-se à Europa. Fitar é um processo de (re)conhecimento. Vários poetas e outros autores, ao longo do tempo, têm explorado, recorrentemente, em sentido mais amplo ou mais restrito, os conceitos de olhar e ver. Olhar será uma função de natureza meramente orgânica; já ver configura uma atitude consciente e ativa perante um sujeito, um objeto, um cenário; um observar e interpretar em atualidade e circunstância, rodeado, se não submerso, de / num torvelinho de seres e coisas, dinâmicas ou estáticas, num processo de desafio, assédio, provocação.

Recorro novamente à obra referida do ilustre limiano e monge beneditino. Na entrada: Olhar – Ver – Esguardar – Avistar – Enxergar – Lobrigar – Divisar -, estabelece, entre outras, a seguinte distinção: «OLHAR é lançar os olhos; aplicar o orgão da vista. VER é o efeito do olhar: é apprehender com a vista o objecto a que se lançárão os olhos: é sentir a impressão, que o objecto fez, no orgão da vista. (id. 171) José Saramago, por sua vez, epigrafa o Ensaio sobre a Cegueira (1995, 3.ª ed.) com uma máxima retirada do Livro dos Conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»
Reparar é, pois, apreender algo no seu todo, a partir da observação das particularidades e acessórios da sua constituição orgânica. É, digamos, um exercício de seletividade e interiorização, visando superar o propagado conceito do Principezinho de Saint-Exupéry quando afirma que «o essencial é invisível aos olhos; só se vê bem com o coração». Em sentido coincidente, Alberto Caeiro, criação heterónoma de Pessoa, por seu lado, leva a extremos gnosiológicos (ou anti-gnosiológicos) o processo da visão, esvaziando-o de toda e qualquer interferência racional do agente observador. Nos seus Poemas (1963, 3.ª ed.), recorrentemente, direi mesmo obsessivamente, o irracionalismo (ou a-racionalismo?) constitui uma atitude metódica e sistemática, conferindo domínio absoluto à espontaneidade e à autenticidade do sentimento projetado sobre o mundo dos seres e da natureza. Percorrendo o livro, a par e passo surpreendemos versos vinculando tal opção. Por exemplo, entre outros: «Pensar é não compreender… O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos).» (pág. 22); «Penso com os olhos e com os ouvidos/ E com as mãos e os pés/ E com o nariz e a boca.» (pág. 37), etc. As coisas na sua pura individuação e indivisibilidade, imunes a preconceitos e pressupostos. José Gil, figura cimeira do nosso ensaísmo, com trabalhos consagrados ao complexo pessoano, na sua obra Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa, comenta o objetivismo irracional e sensorial de Caeiro nos seguintes termos: «Recusando qualquer transcendência, ele vive, por assim dizer, “no plano da natureza”; aspirando à pura exterioridade, troça da metafísica e dos seus mundos “interiores”.) (1999, pág. 15) E, pouco depois, afirma: «é o único ser humano capaz de ver naturalmente, sem esforço. Todos os outros precisam de aprender a ver. Aprender a desaprender, como escreve Caeiro, para se ter acesso a uma visão espontânea e natural.» (id. pág. 17)

O rosto, pois. O que de nós é espelho, mesmo se baço, mesmo quando poliédrico. Onde aflora a substância magmática do nosso eu profundo, desagua o caudal tumultuoso de sentimentos, volições e sensações expressos em traços de serenidade, crispação, dúvida, angústia, etc. – tantos e tais consoante o estado psicossomático de cada um em cada momento. Transposto para este plano, também o exercício poético ao rosto se anuncia sempre que o poeta nele se concentra. Ecrã, expositor, retrato em negativo, nele aflui o júbilo pela palavra descoberta e transformada em fonte de emanação do ser, no seu estado de atualização e contingência, também de porfia em superar os limites que os naturais constrangimentos lhe impõem.
Existe no rosto uma dupla capacidade funcional: ler e deixar-se ler. Se tem sido dada à propriedade ativa uma maior ênfase nestes parágrafos introdutórios, não menos importante se torna poder ler um rosto na sua autêntica aparição constituída de complexidade e mistério. Se ele nos fornece «uma imagem de si à qual o indivíduo se deve conformar» (Erving Goffmam, citado por Claudine Haroche em História do Rosto (Círculo de Leitores, 1997, pág. 9); se, como afirma Johann Jakob Engel, ele se constitui em «principal morada dos movimentos da alma» (ibidem, pág. 109), é apenas por um jogo reflexo que o poderemos tomar como janela reveladora da própria interioridade. Ninguém se pode autocontemplar face-a-face, impossibilidade figurada no mitológico Janus bifacial, cujos rostos se encontram em posição diametralmente oposta. Cabe ao interlocutor, como agente externo, essa prerrogativa de poder ler um rosto na sua genuína e desnuda figuração. Tratando-se da dimensão artística essa leitura devém e é condicionada pela impressão que a obra em apreço provoca. Nela se revela, com efeito, em retrato ou caricatura, em autenticidade ou fingimento, o rosto mais ou menos acessível autor. É uma espécie de ato maiêutico o que o leitor crítico pretende exercer sobre o íntimo de uma obra, conectando-a com a correspondente intensidade explícita, insinuada ou mesmo imaginada, da fisionomia do autor, enquanto sob dependência da pulsão criativa, desta forma estabelecendo uma interação entre a essência do texto e a personalidade nele projetada.

Este rosto, portanto; o rosto de David F. Rodrigues (1), autor de algumas navegações-périplos já antes ousadas pelos mares, quase sempre procelosos e hostis, da aventura poética. Neste livro o autor reflete, perante o desconcerto do mundo e os equívocos quanto à sua possível salvação, uma atitude de desassossego e de desesperança. Abre com duas citações, uma de Camões, outra de Herberto Hélder. Do primeiro:
«Canção, não digas mais; e se teus versos
À pena vêm pequenos,
Não queiram de ti mais, que dirás menos.
                                               (Lírica Completa III, Lisboa – IN-CM, 1981, pág. 23.)

E do segundo:

«Gostaria de escrever o livro de que tenho medo.»
                                   (Apresentação do Rosto, Ed. Ulisseia, Lisboa – 1968, pág. 18.)

E logo no poema de abertura («1» / pág. 9), breve e incisivo, a consciência resignada dos limites que a natureza impõe à ilimitada aspiração ao suprassumo lírico:

«se um dia der

a minha vida um livro
uma só página há de ter

o rosto»


O termo “rosto” pode conter, aqui, uma certa ambiguidade, não estranha às linhas introdutórias deste apontamento, dado que tanto pode significar a “página de rosto” (no glossário editorial correspondente à página ímpar inicial de um livro, contendo os elementos principais: título, autor, género literário, editor, local e data, etc.), como o próprio rosto do poeta, único comportável em tão exíguo - «uma só página» – campo de observação.
É nesta perspetiva que convém englobar e interpretar o conjunto de 23 poemas em apreço: como emanação reflexa do sujeito poético. Curiosamente, (sintomaticamente?) o lexema “rosto” apenas se repete no último poema do conjunto. Nele o autor, ancorado na praia da suspensa deriva, afirma o propósito tenaz de um dia merecer alcançar o rosto (o estatuto) de poeta:

«quando um dia inscrever
o meu poema na pétala mais breve
da mais simples flor de incenso

consentirei que ao posto
de poeta me dês rosto»
(«23» / pág. 35)

Que diz, do que fala o autor neste pequeno livro? É preciso, para uma resposta cabal e consequente, reportarmo-nos à sua obra anterior, sobretudo a estes cantares fez & som escarnhos d’ora - (Viana do Castelo, 2015) onde a ironia e o maldizer implicam um mais vasto e complexo mosaico de intenções e intervenções. Se nunca a poesia deve adotar uma atitude passiva, distanciada ou indiferente perante a vida da cidade, esta obra reflete-o com a veemência de quem vê e alcança para além do imediato, do superficial, do aparente. “Vi como um danado”, poderia ele dizer, citando o Alberto Caeiro atrás comentado. Referindo-me àquele livro, escrevi que o autor «foi buscar suporte trovadoresco para unir um conjunto de poemas escarninhos, de um escárnio que nada tem de gratuito entretém, de justas estéreis e floreios para regalo de palacianos ociosos. É excelente pela sua contundente dimensão interventiva num Portugal contemporâneo órfão de referências mobilizadoras, vazio de valores, mergulhado no pântano de todas as vilanias e corrupções. (Suplemento CULTURA do Diário do Minho de 16-12-2015)
Essa sua visão implacável e visceralmente pessimista perante uma realidade que o rodeia e tenta submergir; essa radiografia de um povo acrítico e subserviente num país de assimetrias e gritantes desníveis sociais, podemos dizer que, se não tão cruamente, ainda se repercute neste novo livro. «lavrador de terra mais que ingrata sou», assim se define David F. Rodrigues, metaforicamente, na luta inglória por erradicar da sementeira as «ervas daninhas» e  aliviá-la «de toupeiras ratos e outros males». Depois, «mal chega o mês da colheita / já bicho de avaro bico e boca insatisfeita / saciado está em me fazer desfeita // resta-me então o restolho raseiro.» («9.» / pág. 17) Concebe a poesia como uma espécie de lavoura de subsistência e lamenta, com injustificada modéstia, a sua inaptidão para um cabal granjeio, tomando-a como a força da sua fraqueza:

                              «a poesia não é
                                    o meu forte    a poesia é
                                                                   o meu fraco

                                 a poesia é

                                     a força da minha fraqueza»
                         («2.» / pág. 10)

E, suspiroso, escreve no poema «6.», pág. 14: «tivesse eu encontrado já /  a palavra única que procuro / há volta de meio século / para compor o simples verso».                

A poesia resultará, pois, de um esforço tenaz e contínuo em aprimorar a linguagem que, por sua vez, tem como função primeira penetrar e desvelar o ser e o mistério da existência. Natália Correia, numa ousada e original noção, chega a considerar a poesia como comestível, algo que entra no sistema alimentar do nosso espírito. Também David F. Rodrigues comunga do mesmo ponto de vista quando, poema «4.», pág. 12, escreve:

«é com poucas e vulgares palavras
como géneros de pura subsistência
que cuido e preparo os alimentos
que maior prazer à língua me dão

é na irrepetível e cuidada sintaxe
dos seus aromas texturas e cores
selecionados com persistência
verso a verso discurso a refeição

busco só parcos e refinados sabores»


Noutra perspetiva, poderemos falar numa relação amor / desamor insuperável, experimentada no limite de um discurso que sempre fica aquém do desejado, provocando estados de ansiedade e angústia:

«a mim a poesia faz-me
um mal terrível vício
contraído na juventude
incorrigível devora-me

noite e dia horas a fio
(…)»
(«13.» / pág. 23)

Não por mera e balofa vaidade, antes pelo desígnio e porfia de iluminar o mundo com a mais pura claridade que dorme no interior adormecido das palavras. Nesse sentido ridiculariza quem busca fama e proveito através da mediocridade e da prosápia, como se lê neste excerto do poema «16.» / pág. 28:

«para busto teres na praça
não basta rimares de graça

precisas doutra resposta
evita a bota na bosta

nunca terás o que pedes
cheirando assim como fedes»

David F. Rodrigues vive a poesia como algo essencial para a legibilidade possível do mundo, dos seus mistérios, desafios, paradoxos. Sabe que ela estabelece a ponte entre seres irmanados nos mesmos sentimentos, medos, aspirações. Ostensivamente militante e contestatária, ou remetida a um lirismo sereno e intimista, a poesia será sempre um laço de fraternidade a unir os homens e o melhor antídoto contra as mesquinhas ambições que fazem correr tanto zoilo ao arrepio dos valores fundamentais.

«mas o que é e para que serve
hoje a poesia me perguntas

não não sei nunca saberei
com certezas responder-te

só sei que por ela foi
que um dia te encontrei

só sei que sem ela um dia
corro o risco de perder-te»
(«20.» / pág. 32)

            Ao ler este poema ocorreu-me uma genial observação de Jorge de Sena que não resisto a citar: «Não chegamos a dois mil anos de entendimento crítico do que a poesia seja, para continuarmos ainda a discutir o que ela devia ser.» (Poesia e Cultura, Porto, 2006, pág. 99) De facto, filósofos, filólogos e ensaístas. De todos os tempos e de todas as latitudes têm tentado ingloriamente esse cometimento. Revolucionária da escrita, devassadora dos mais profundos e insondáveis arcanos da natureza humana e dos mais impenetráveis mistérios do mundo, cabe ao poeta, a cada verdadeiro poeta, a possibilidade de sobre ela lançar uma minúscula partícula de luz, aquela lábil faúlha que resulta do espanto de um olhar-ver-penetrar sobre a essência e a circunstância que o estimula, aquele espanto que Theodor Adorno entende ser «um longo e inocente olhar sobre o objeto». Assim a poesia de David F. Rodrigues. A sua disciplinada contensão, na sua original riqueza construtiva, com frequente recurso a tropos, elipses, síncopes, hipérboles e outros instrumentos gramaticais, propícios a leituras múltiplas e sobrepostas, ele figura de pleno direito no restrito grupo de poetas portugueses e estrangeiros que conseguem «surpreender um instante da existência, recriá-lo poeticamente como quem faz uma fotografia», como afirmou recentemente José António Gomes no jornal As Artes entre as Letras (n.º 211, 31-01-2018, pág. 11).

            Por tudo quanto disse e pelo muito que deixei de dizer, aconselho vivamente leitura de O Rosto. Leitura que não pode ser apressada nem desatenta, antes digerida com o vagar que merece a fruição de boas iguarias.


(1) – Coleção «Poetas da Eufeme» n.º 14. Leça da Palmeira, Eufeme, 2018. Capa de Sérgio Ninguém.

Texto de apresentação da obra no Instituto Politécnico de Viana do Castelo em 9 de março de 2018.

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OBS1. – Publicado em Cultura – Suplemento de o Diário do Minho, de 30/05/2018, pp. II-IV, acessível também AQUI

OBS2. – Acesso a outras opiniões e/ou recensões críticas ao livro, sob a «etiqueta» o rosto, neste blogue.

OBS3. - De o rosto, foi lançada, em 16-07-2018, a 2.ª ed., pela mesma editora (Eufeme).


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

III. Dispersos


III.1. Poema (LXIX)

             Todos os dias são da poesia e sua partilha, como pão nosso de cada dia


Publicado, sem título, em Limiana - Revista de Informação, Cultura e Turismo (Ano VII - N.º 36), Fevereiro de 2014, p. 10. Este poema encerra artigo de Cláudio Lima, intitulado «David Rodrigues - Poeta Limiano», publicado no mesmo número da referida revista, pp. 8-10.

«cai a chuva» encontra-se também publicado AQUI.

NB - Todos os direitos reservados.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

IV. Frutos da Terra e do Homem
  
                                 Fernão de Magalhães Gonçalves faz hoje 74 anos.

Obs. 1 - Respeitadas as grafias das edições consultadas.
Obs. 2 - Os retratos do Poeta, reproduzidos neste "post", foram colhidos em Google / Imagens / Fernão de Magalhães Gonçalves.

Carl Sandburg (1878 - 1967), poeta norte-americano, mas de origem sueca, faz hoje 139 anos. Para conhecer, deste autor, alguns poemas (três) e uma breve nota biobibliográfica, cf. Poesia do Século XX (De Thomas Hardy a C. V. Cattaneo) - Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena. Porto: Inova, pp. 214-5 e 519, respetivamente. 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

À BOCA DO FORNO (9)


                                                                                         Crítica, por Cláudio Lima  





domingo, 11 de janeiro de 2015

IV. Frutos da Terra e do Homem






ELOGIOS / ELEGIAS
(Novo livro de poemas de Cláudio Lima)



Alguns dias antes do último Natal, o poeta Cláudio Lima ofereceu-nos uma nova coletânea de poemas: Elogios/Elegias, com pref. de Vítor Aguiar e Silva, e chancela da Editora Labirinto (Fafe).
O livro é constituído por 38 poemas. Como o título indica, o poeta homenageia, no seu conjunto, uma trintena de nomes importantes, sobretudo da literatura, mas também das artes plásticas, da música (erudita e popular), da religião, da filosofia e da ciência, portugueses e estrangeiros, que nos deixaram com obra de reconhecido mérito e que se findaram, na sua grande maioria, durante o séc. XX.
Os nossos poetas e escritores figuram em maior número (por vezes com mais de um texto): Fernando Pessoa, com suas «insónias / heterónimas» [p. 22] e o amor por Ofélia, «tão breve / quase sem tempo», bem como Ricardo Reis e seus instantâneos sentidos [p. 23]. Camilo Pessanha, é «pescador de pérolas doentes» que tem «o condão / de despertar metáforas e mitos». [p. 25] O elogio a Miguel Torga é feito na primeira pessoa, isto é, a voz do sujeito poético é a do escritor coimbrão, numa espécie de testemunho literário: «a/ obra inteira falará por mim.» [p. 29]  Sophia [de Mello Breyner Andresen] é a voz onde «o verbo se arrepende de ser neutro / e revela tudo quanto sabe.» [p. 30] Mas os livros que Eugénio de Andrade semeou «são rastilhos / de pura fraternidade e de perfume» [p. 31], escritos na «gramática límpida e luminosa / do teu [seu] canto.» [p. 32]» Com a morte de David Mourão-Ferreira, «Um denso nevoeiro agora agride / os olhos magoados das gaivotas»; [p. 34], enquanto a morte de Vergílio Ferreira não passou de uma «liturgia de semi-luto nacional» [p. 33]. Mas com a de José Cardoso Pires, «nunca a cidade / em dor e saudade, / se sentiu tão só.» [p. 35] Por outro lado, na morte de Luís Pacheco, «do Príncipe Real / uma embaixada de pombos /veio ao funeral», apesar dos estercos, próprios e alheios. [p. 36] Por fim, Sebastião Alba, que, por dormir ao relento e Carl Sagan já ter morrido, é ele que «fica a mandar nas estrelas». [p. 37]
Dos poetas estrangeiros, Cláudio elogia/elegia Lorca e o «Enorme seu peito aberto / à paixão que nele ardia» [p. 53], Neruda, cuja poesia é «Um coro de vozes contra o medo» [55] e Sylvia Plath, que depois de abrir o gás, meteu «no forno / um rosto póstumo porque rejeitado / e ávido de tantos afetos por provar.» [p. 62]
Nesta lista caberia também o nome de Zeca [José] Afonso que, como se sabe, também foi poeta, apesar de ser mais conhecido como cantor de intervenção: «E era uma voz tão funda / como as raízes da esperança / e era uma voz imensa / vaticinando alvoradas.» [p. 40] Cláudio Lima, neste âmbito, celebra também Amália, a quem pede: «Deixa, rainha sem trono ou diadema, / o timbre cristalino do teu canto» [p. 44]. Em Carlos Paredes, vê que suas mãos são «Aranhas em alvoroço», «tecendo a geometria instável de irrepetíveis melodias» [p. 45]. De António Variações canta a «rebeldia» que nos deixou, mas que «os arquivos do silêncio vão lacrar» [p. 39]. E celebra ainda o centenário de Hilário, cuja voz «perpassa ainda agora / pela Coimbra doutora / em acordes de cristal.» [p. 38]
Dentro da música erudita, recorda «Chopim no Mosteiro de Valdemosa», onde, durante o concerto, uma mulher meditava as unhas. [p. 56] E o jazz também não falta, na elegia que dedica a Louis Armstrong, «uma explosão de alegria  em todos  os silêncios magnéticos ali para os bairros de nova Orleães». [p. 58]
De Soares dos Reis celebra, celebrando-o,  a «nostalgia do «Desterrado», como «sede da pátria por beber» [p. 17], enquanto de Espiga Pinto canta os cavalos, «Quase Pégasos invadindo o mito, / músculo e leveza, altivez em pose» [p. 46]. Picasso segura «Numa só mão / as pontas do arco-íris», e Dalí  os instantes «de génio ou de loucura», ao «sacrificar os relógios sobre as árvores / como condenados pendulares por reincidentes heresias». [p. 61]
Não faltam algumas figuras religiosas: Madalena, aquela que «Indefesa na cama onde me dei,/ celebro em dor de rejeitada amante / as exéquias do amor que idealizei…» [p. 47]; Madre Teresa, num «epitáfio prévio»: «Aqui jaz / o que sobrou / de mim:», ou seja: «no muito que dei aos homens, / no pouco que deixo aos vermes» [p. 51]; e duas elegias a Francisco de Assis, «lúcida consciência da humana condição: / um átomo de cisco / injetado de alma e de razão.» [p. 48]
Faltam referir mais quatro nomes: Agostinho da Silva, português de «nome comum», mas «grande Profeta» que «o Além te elegeu / para traçares a grande linha reta / do sinuoso destino que nos deu.» [p. 26]; e Carl Sagan, cientista astrónomo que, depois de tanto as ter namorado, «Quando as estrelas já eram tuas / fechaste a porta por dentro / e foste fazer amor / com todas elas.» [p. 52] E duas outras figuras da nossa história mítica e lendária são também elogiadas nas elegias de Cláudio Lima: Inês de Castro, símbolo do que a «nossa alma tem / de inditoso e sofrido», no «amor proibido» [p. 19], e [D.] Sebastião, cuja elegia Aguiar e Silva considera, justamente, «um texto antológico». Por isso, com ele termino:


Sebastião


Cortina densa o nevoeiro
Vem repetir a infausta saga
Do Encoberto.

Cai sobre nós como um presságio,
Uma síncope de espera a dilatar-se
Em areais funestos.

Cadáver que os abutres não quiseram
E as nossas lágrimas não puderam
Ungir de eternidade,

Mora na noite altíssima do luto,
Na memória adormecida das idades,
Nos ancoradouros da nossa nostalgia.

Dizem que fanstástico vive algures
E ubíquo em seu corcel
Ensaia a apoteose do regresso. [p. 18]


É com base sobretudo neste poema que o Professor constrói o prefácio de Elogios/Elegias, a que deu o título de «O mito sebástico na poesia de Cláudio Lima». Texto que termina com estas palavras:

«Esta reescrita do mito sebástico, na qual Cláudio Lima recusa, com […] sabedoria poética […], as derivas ideológicas a que o mito tem dado origem, é a elegia de um povo condenado a sofrer hoje mais uma crise brutal no drama secular da sua contingência histórica. Resta a esperança da nostalgia, isto é, do regresso…» [p. 10]



            Convirá, todavia, ter presente que a poesia de Cláudio Lima não é propriamente saudosista e muito menos fatalista. Os nomes que nestas elegias elogia são para o presente e o futuro, como património imaterial da nossa cultura. Nenhum, assim, ficará encoberto, por mais densos que sejam os nevoeiros.


NB1 - O livro traz, no final, uma breve nota biobibliográfica do autor.
NB2 - A fotografia do poeta foi colhida em Google / Imagens / Cláudio Lima, Escritor.