O Rosto
Poesia de David F. Rodrigues
Por Cláudio Lima
O
rosto, a face. Sinónimos puros ou nem tanto? Dois nomes que proliferam no nosso
vocabulário, corrente e poético, denotando certas e subtis distinções de
natureza semântica. O nosso filólogo e linguista Frei Francisco de S. Luís,
vulgo Cardeal Saraiva, na obra Ensaio sobre alguns Synonymos da Lingua
Portugueza, agrupando Cara – Rosto –
Semblante – Face – Vulto, opina
que, em relação às duas primeiras, «Rosto tem uma significação mais ampla; e parece
exprimir a parte dianteira, que é juntamente a mais saliente, ou a que mais
aparece, ou primeiro se adverte, tanto no homem, como em outros objectos.» Por
sua vez, «face tem seu particular uso quando queremos falar das côres, e de
outras propriedades, que se percebem pela superfície dos corpos.» (1856, págs.
25/27) Digamos que face espelha o
perfil anatómico, enquanto rosto
revela o nosso ser e estar mais profundo e enigmático.
Reportado
ao universo poético, o rosto será, assim, uma espécie de percursor da mensagem,
a sua embrionária e semioculta expressão. «O rosto com que fita é Portugal» –
escreve Fernando Pessoa na Mensagem,
referindo-se à Europa. Fitar é um processo de (re)conhecimento. Vários poetas e
outros autores, ao longo do tempo, têm explorado, recorrentemente, em sentido
mais amplo ou mais restrito, os conceitos de olhar e ver. Olhar será uma função de natureza meramente orgânica; já ver configura uma atitude consciente e
ativa perante um sujeito, um objeto, um cenário; um observar e interpretar em
atualidade e circunstância, rodeado, se não submerso, de / num torvelinho de
seres e coisas, dinâmicas ou estáticas, num processo de desafio, assédio,
provocação.
Recorro
novamente à obra referida do ilustre limiano e monge beneditino. Na entrada: Olhar – Ver – Esguardar – Avistar –
Enxergar – Lobrigar – Divisar -, estabelece, entre outras, a seguinte
distinção: «OLHAR é lançar os olhos; aplicar o orgão da vista. VER é o efeito
do olhar: é apprehender com a vista o
objecto a que se lançárão os olhos: é sentir a impressão, que o objecto fez, no
orgão da vista. (id. 171) José Saramago, por sua vez, epigrafa o Ensaio sobre a Cegueira (1995, 3.ª
ed.) com uma máxima retirada do Livro
dos Conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»
Reparar
é, pois, apreender algo no seu todo, a partir da observação das
particularidades e acessórios da sua constituição orgânica. É, digamos, um
exercício de seletividade e interiorização, visando superar o propagado
conceito do Principezinho de
Saint-Exupéry quando afirma que «o essencial é invisível aos olhos; só se vê
bem com o coração». Em sentido coincidente, Alberto Caeiro, criação heterónoma de
Pessoa, por seu lado, leva a extremos gnosiológicos (ou anti-gnosiológicos) o
processo da visão, esvaziando-o de toda e qualquer interferência racional do
agente observador. Nos seus Poemas (1963,
3.ª ed.), recorrentemente, direi mesmo obsessivamente, o irracionalismo (ou a-racionalismo?)
constitui uma atitude metódica e sistemática, conferindo domínio absoluto à
espontaneidade e à autenticidade do sentimento projetado sobre o mundo dos seres
e da natureza. Percorrendo o livro, a par e passo surpreendemos versos
vinculando tal opção. Por exemplo, entre outros: «Pensar é não compreender… O
Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos).» (pág.
22); «Penso com os olhos e com os ouvidos/ E com as mãos e os pés/ E com o
nariz e a boca.» (pág. 37), etc. As coisas na sua pura individuação e
indivisibilidade, imunes a preconceitos e pressupostos. José Gil, figura
cimeira do nosso ensaísmo, com trabalhos consagrados ao complexo pessoano, na
sua obra Diferença e Negação na Poesia
de Fernando Pessoa, comenta o objetivismo irracional e sensorial de Caeiro
nos seguintes termos: «Recusando qualquer transcendência, ele vive, por assim
dizer, “no plano da natureza”; aspirando à pura exterioridade, troça da
metafísica e dos seus mundos “interiores”.) (1999, pág. 15) E, pouco depois,
afirma: «é o único ser humano capaz de ver naturalmente, sem esforço. Todos os
outros precisam de aprender a ver. Aprender a desaprender, como escreve Caeiro,
para se ter acesso a uma visão espontânea e natural.» (id. pág. 17)
O
rosto, pois. O que de nós é espelho,
mesmo se baço, mesmo quando poliédrico. Onde aflora a substância magmática do
nosso eu profundo, desagua o caudal tumultuoso de sentimentos, volições e sensações
expressos em traços de serenidade, crispação, dúvida, angústia, etc. – tantos e
tais consoante o estado psicossomático de cada um em cada momento. Transposto
para este plano, também o exercício poético ao rosto se anuncia sempre que o
poeta nele se concentra. Ecrã, expositor, retrato em negativo, nele aflui o
júbilo pela palavra descoberta e transformada em fonte de emanação do ser, no
seu estado de atualização e contingência, também de porfia em superar os limites
que os naturais constrangimentos lhe impõem.
Existe
no rosto uma dupla capacidade funcional: ler e deixar-se ler. Se tem sido dada
à propriedade ativa uma maior ênfase nestes parágrafos introdutórios, não menos
importante se torna poder ler um rosto na sua autêntica aparição constituída de
complexidade e mistério. Se ele nos fornece «uma imagem de si à qual o
indivíduo se deve conformar» (Erving Goffmam, citado por Claudine Haroche em História do Rosto (Círculo de Leitores,
1997, pág. 9); se, como afirma Johann Jakob Engel, ele se constitui em
«principal morada dos movimentos da alma» (ibidem, pág. 109), é apenas por um
jogo reflexo que o poderemos tomar como janela reveladora da própria interioridade.
Ninguém se pode autocontemplar face-a-face, impossibilidade figurada no
mitológico Janus bifacial, cujos rostos se encontram em posição diametralmente
oposta. Cabe ao interlocutor, como agente externo, essa prerrogativa de poder
ler um rosto na sua genuína e desnuda figuração. Tratando-se da dimensão
artística essa leitura devém e é condicionada pela impressão que a obra em
apreço provoca. Nela se revela, com efeito, em retrato ou caricatura, em
autenticidade ou fingimento, o rosto mais ou menos acessível autor. É uma
espécie de ato maiêutico o que o leitor crítico pretende exercer sobre o íntimo
de uma obra, conectando-a com a correspondente intensidade explícita, insinuada
ou mesmo imaginada, da fisionomia do autor, enquanto sob dependência da pulsão
criativa, desta forma estabelecendo uma interação entre a essência do texto e a
personalidade nele projetada.
Este
rosto, portanto; o rosto de David F.
Rodrigues (1), autor de algumas navegações-périplos já antes ousadas pelos
mares, quase sempre procelosos e hostis, da aventura poética. Neste livro o
autor reflete, perante o desconcerto do mundo e os equívocos quanto à sua
possível salvação, uma atitude de desassossego e de desesperança. Abre com duas
citações, uma de Camões, outra de Herberto Hélder. Do primeiro:
«Canção, não digas mais; e se
teus versos
À pena vêm pequenos,
Não queiram de ti mais, que dirás
menos.
(Lírica Completa III, Lisboa – IN-CM,
1981, pág. 23.)
E
do segundo:
«Gostaria de escrever o livro de
que tenho medo.»
(Apresentação do Rosto, Ed. Ulisseia, Lisboa – 1968, pág. 18.)
E
logo no poema de abertura («1» / pág. 9), breve e incisivo, a consciência
resignada dos limites que a natureza impõe à ilimitada aspiração ao suprassumo lírico:
«se um
dia der
a minha
vida um livro
uma só
página há de ter
o rosto»
O
termo “rosto” pode conter, aqui, uma certa ambiguidade, não estranha às linhas
introdutórias deste apontamento, dado que tanto pode significar a “página de
rosto” (no glossário editorial correspondente à página ímpar inicial de um
livro, contendo os elementos principais: título, autor, género literário, editor,
local e data, etc.), como o próprio rosto do poeta, único comportável em tão
exíguo - «uma só página» – campo de observação.
É
nesta perspetiva que convém englobar e interpretar o conjunto de 23 poemas em
apreço: como emanação reflexa do sujeito poético. Curiosamente,
(sintomaticamente?) o lexema “rosto” apenas se repete no último poema do
conjunto. Nele o autor, ancorado na praia da suspensa deriva, afirma o
propósito tenaz de um dia merecer alcançar o rosto (o estatuto) de poeta:
«quando
um dia inscrever
o meu
poema na pétala mais breve
da mais
simples flor de incenso
consentirei
que ao posto
de
poeta me dês rosto»
(«23» /
pág. 35)
Que
diz, do que fala o autor neste pequeno livro? É preciso, para uma resposta
cabal e consequente, reportarmo-nos à sua obra anterior, sobretudo a estes cantares fez & som escarnhos
d’ora - (Viana do Castelo, 2015) onde a ironia e o maldizer implicam um
mais vasto e complexo mosaico de intenções e intervenções. Se nunca a poesia
deve adotar uma atitude passiva, distanciada ou indiferente perante a vida da
cidade, esta obra reflete-o com a veemência de quem vê e alcança para além do
imediato, do superficial, do aparente. “Vi como um danado”, poderia ele dizer,
citando o Alberto Caeiro atrás comentado. Referindo-me àquele livro, escrevi
que o autor «foi buscar suporte trovadoresco para unir um conjunto de poemas
escarninhos, de um escárnio que nada tem de gratuito entretém, de justas
estéreis e floreios para regalo de palacianos ociosos. É excelente pela sua
contundente dimensão interventiva num Portugal contemporâneo órfão de
referências mobilizadoras, vazio de valores, mergulhado no pântano de todas as
vilanias e corrupções. (Suplemento CULTURA do Diário do Minho de 16-12-2015)
Essa
sua visão implacável e visceralmente
pessimista perante uma realidade que o rodeia e tenta submergir; essa
radiografia de um povo acrítico e subserviente num país de assimetrias e
gritantes desníveis sociais, podemos dizer que, se não tão cruamente, ainda se
repercute neste novo livro. «lavrador de terra mais que ingrata sou», assim se
define David F. Rodrigues, metaforicamente, na luta inglória por erradicar da
sementeira as «ervas daninhas» e
aliviá-la «de toupeiras ratos e outros males». Depois, «mal chega o mês
da colheita / já bicho de avaro bico e boca insatisfeita / saciado está em me
fazer desfeita // resta-me então o restolho raseiro.» («9.» / pág. 17) Concebe
a poesia como uma espécie de lavoura de subsistência e lamenta, com
injustificada modéstia, a sua inaptidão para um cabal granjeio, tomando-a como
a força da sua fraqueza:
«a poesia não é
o meu forte
a poesia é
o
meu fraco
a poesia é
a força da minha fraqueza»
(«2.» /
pág. 10)
E,
suspiroso, escreve no poema «6.», pág. 14: «tivesse eu encontrado já / a palavra única que procuro / há volta de meio
século / para compor o simples verso».
A
poesia resultará, pois, de um esforço tenaz e contínuo em aprimorar a linguagem
que, por sua vez, tem como função primeira penetrar e desvelar o ser e o
mistério da existência. Natália Correia, numa ousada e original noção, chega a
considerar a poesia como comestível, algo que entra no sistema alimentar do
nosso espírito. Também David F. Rodrigues comunga do mesmo ponto de vista
quando, poema «4.», pág. 12, escreve:
«é com
poucas e vulgares palavras
como
géneros de pura subsistência
que
cuido e preparo os alimentos
que
maior prazer à língua me dão
é na
irrepetível e cuidada sintaxe
dos
seus aromas texturas e cores
selecionados
com persistência
verso a
verso discurso a refeição
busco
só parcos e refinados sabores»
Noutra
perspetiva, poderemos falar numa relação amor / desamor insuperável, experimentada
no limite de um discurso que sempre fica aquém do desejado, provocando estados
de ansiedade e angústia:
«a mim
a poesia faz-me
um mal
terrível vício
contraído
na juventude
incorrigível
devora-me
noite e
dia horas a fio
(…)»
(«13.»
/ pág. 23)
Não
por mera e balofa vaidade, antes pelo desígnio e porfia de iluminar o mundo com
a mais pura claridade que dorme no interior adormecido das palavras. Nesse
sentido ridiculariza quem busca fama e proveito através da mediocridade e da
prosápia, como se lê neste excerto do poema «16.» / pág. 28:
«para
busto teres na praça
não
basta rimares de graça
precisas
doutra resposta
evita a
bota na bosta
nunca
terás o que pedes
cheirando
assim como fedes»
David
F. Rodrigues vive a poesia como algo essencial para a legibilidade possível do
mundo, dos seus mistérios, desafios, paradoxos. Sabe que ela estabelece a ponte
entre seres irmanados nos mesmos sentimentos, medos, aspirações. Ostensivamente
militante e contestatária, ou remetida a um lirismo sereno e intimista, a
poesia será sempre um laço de fraternidade a unir os homens e o melhor antídoto
contra as mesquinhas ambições que fazem correr tanto zoilo ao arrepio dos
valores fundamentais.
«mas o
que é e para que serve
hoje a
poesia me perguntas
não não
sei nunca saberei
com
certezas responder-te
só sei
que por ela foi
que um
dia te encontrei
só sei
que sem ela um dia
corro o
risco de perder-te»
(«20.»
/ pág. 32)
Ao
ler este poema ocorreu-me uma genial observação de Jorge de Sena que não
resisto a citar: «Não chegamos a dois mil anos de entendimento crítico do que a
poesia seja, para continuarmos ainda a discutir o que ela devia ser.» (Poesia e Cultura, Porto, 2006, pág. 99)
De facto, filósofos, filólogos e ensaístas. De todos os tempos e de todas as
latitudes têm tentado ingloriamente esse cometimento. Revolucionária da
escrita, devassadora dos mais profundos e insondáveis arcanos da natureza
humana e dos mais impenetráveis mistérios do mundo, cabe ao poeta, a cada
verdadeiro poeta, a possibilidade de sobre ela lançar uma minúscula partícula
de luz, aquela lábil faúlha que resulta do espanto de um olhar-ver-penetrar
sobre a essência e a circunstância que o estimula, aquele espanto que Theodor
Adorno entende ser «um longo e inocente olhar sobre o objeto». Assim a poesia
de David F. Rodrigues. A sua disciplinada contensão, na sua original riqueza
construtiva, com frequente recurso a tropos, elipses, síncopes, hipérboles e
outros instrumentos gramaticais, propícios a leituras múltiplas e sobrepostas,
ele figura de pleno direito no restrito grupo de poetas portugueses e
estrangeiros que conseguem «surpreender um instante da existência, recriá-lo
poeticamente como quem faz uma fotografia», como afirmou recentemente José
António Gomes no jornal As Artes entre
as Letras (n.º 211, 31-01-2018, pág. 11).
Por
tudo quanto disse e pelo muito que deixei de dizer, aconselho vivamente leitura
de O Rosto. Leitura que não pode ser
apressada nem desatenta, antes digerida com o vagar que merece a fruição de
boas iguarias.
(1)
– Coleção «Poetas da Eufeme» n.º 14. Leça da Palmeira, Eufeme, 2018. Capa de
Sérgio Ninguém.
Texto
de apresentação da obra no Instituto Politécnico de Viana do Castelo em 9 de
março de 2018.
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OBS1. – Publicado em Cultura – Suplemento de o Diário do Minho, de 30/05/2018, pp. II-IV, acessível também AQUI.
OBS2. – Acesso a
outras opiniões e/ou recensões críticas ao livro, sob a «etiqueta» o rosto, neste blogue.
OBS3. - De o rosto, foi lançada, em 16-07-2018, a 2.ª ed., pela mesma editora (Eufeme).
OBS3. - De o rosto, foi lançada, em 16-07-2018, a 2.ª ed., pela mesma editora (Eufeme).
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