IV. Frutos da Terra e do Homem

Pedro Homem de Mello
no Roteiro de Viana*
David F. Rodrigues
Roteiro
de Viana foi uma revista que se
publicou, em Viana do Castelo, entre 1959 e 1988. Saía no mês Agosto, dedicada
à célebre Romaria da Senhora da Agonia. Foi seu fundador, editor e diretor José
Camilo Pastor (1911-1988)(1).
Cada
número, num total de três dezenas, abre com «uma saudação dirigida aos
forasteiros em visita à cidade atraídos
pelas Festas e um agradecimento aos colaboradores e anunciantes […]. Na
sua estrutura gráfica evidencia-se uma certa homogeneidade mantendo-se como
elemento caracterizador uma forte presença de anúncios publicitários que
extravasam os limites da região e são o seu suporte financeiro, intercalados
aqui e ali por diferentes trabalhos na sua maioria de âmbito
turístico-cultural, versando temas relacionados com a arqueologia, a etnografia,
a etnologia, o artesanato, a história, o património e a literatura com especial
destaque para a poesia e conto, salientando-se como preocupação fundamental a
promoção da cidade de Viana do Castelo, com algumas incursões noutras
localidades do Alto Minho.» [Viana & Fernandes, 2002/2003: 255(1)]
No
âmbito da literatura, cabe referir que se encontram no Roteiro textos de
criação literária (poemas e contos) e breves estudos sobre alguns poetas e
escritores. No domínio da poesia, são 86 os poemas autónomos. Dois,
porque recolha do folclore, não estão assinados: «Cancioneiro Vianense / Todos me
querem» (1959: 81(2)) e
«Cantigas Populares (Das sargaceiras)» (1967: 148(2)). Os
restantes 84 encontram-se identificados pelos nomes dos autores, por
pseudónimos ou apenas por iniciais. Os poetas colaboradores eram vivos, na sua
quase totalidade. De falecidos, encontramos poemas de Digo Bernardes [sé. XVI,
(«Vale do Lima», soneto XXXI, em 1962: 81(2), repetido em 1984: 159(2))],
João da Rocha [1868-1921, («Ao Rio Lima», 1967: 51(2))] e Rosalía de
Castro [1837-1885, («A Gaita Galega», 1987: 113(2)). Nos anos de
1970 a 1972, foram reproduzidos poemas de Agostinho Veloso, falecido em
fevereiro de 1970, entretanto saídos noutras publicações. Agostinho Veloso
colaborou no Roteiro, com textos em verso, ininterruptamente, desde
1961.
De
entre os poetas vivos que publicaram no Roteiro, alguns nomes merecem
ser destacados, pela qualidade dos seu poemas e pela sua relativa projeção
nacional e/ou regional. Temos, por um lado, António Correia de Oliveira
(1878-1960) e Pedro Homem de Mello (1904-1984), e, por outro, Carlos Lobo de
Oliveira (1895-1973) e Castro Gil, pseudónimo de Amadeu Torres (1924-2012).
Tratarei,
neste apontamento, apenas dos poemas que Pedro Homem de Mello publicou no Roteiro.
Afife tem 5 letras
Pedro 5 letras tem...
Até o meu triste nome
Com Afife rima bem!
Esta quadra
de sabor popular (redondilha maior), com o título de «Eco» e um certo sabor
narcisista, encontra-se no Roteiro de 1971: 33(2). Não a
encontrei nos cerca de trinta livros de poesia que o poeta publicou, antes ou
depois desta data. O mesmo se passa com «Rua» e «Vitória», poemas publicados
apenas, respetivamente, nas revistas de 1962: 52(2) e de 1965: 48(2).
Há , porém, na obra de Pedro Homem de Mello, poemas com estes títulos, mas não
com as redações dos que se encontram no Roteiro. Os que aqui se encontram
são os seguintes:
Rua
|
Vitória
|
Rua que só tens mãos para dar palmas
E ao eco dos aplausos adormeces.
Ó rua surda às lágrimas e às preces!
Mar de cabeças que é deserto de almas.
Rua de sempre,
Eternamente inquieta.
Búzio de Satanaz.
Pátria do medo.
Onde nunca o murmúrio de um segredo
Iluminará a face do Poeta.
Ó rua inevitável que me espera!
Rua! Sinto-lhe a sombra, o bafo, a gula...
Rua. Peso de ferro que me anula
A mim, que sou o irmão da Primavera!
|
De hoje
A vinte anos,
Quando eu fôr
Ainda,
O bailador maior da Serra de Arga,
E tu,
Frágil saudade,
Quase finda,
No vale apenas,
Uma sombra,
Amarga
Verás,
Então,
Como envelhece o Povo
E como, nele, as rugas chegam cedo.
E eu cantarei, feliz,
E cada vez mais novo!
Por ter amado, sempre,
Mas sem medo...
Afife, 1936
|
Além
destes, Pedro Homem de Mello publicou ainda, no Roteiro, mais cinco
poemas, cujas referências anoto no quadro seguinte:
Poema
|
Ano
|
Pg.*
|
1)
«De Viana vêm os cravos e os lilazes»
2)
[«O Lima foge entre os meus dedos vãos» -1º verso]
3)
«Embarque»
4)
«Almocreve»
5)
«Calvário»
|
1960
1968
1969
1970
1972
|
2
61
164
243
61
|
Dos
oito poemas publicados, apenas um traz a indicação de inédito -
«Almocreve» (1970) - que, contudo, aparece incluído, com novo título e outras
alterações, na coletânea Desterrado. Este livro (em edição de autor)
veio a lume e foi posto a circular, possivelmente, em agosto do mesmo ano, uma
vez que a sua composição e impressão são dadas como concluídas em 30 de julho.
No
quadro seguinte, indico o livro onde cada um destes poemas foi publicado.
Mantenho a numeração da primeira coluna, mas modifico o título do poema, nos
casos em que tal se verifica.
Poema
|
Livro
|
Ano
|
Pg.
|
1)
«Carta a Ruben»
2)
«Um rio foge»
3)
«Embarque»
4)
«Conquista»
5)
«Calvário»
|
O
Rapaz da Camisola Verde
As
Perguntas Indiscretas
Miserere
Desterrado
Eu
Desci aos Infernos
|
1954
1968
1948
1970
1972
|
57-58
57-58
94
29
44
|
Temos,
assim, que três poemas mudaram de título: «De Viana vêm os cravos e os
lilazes», no Roteiro de 1960, era «Carta a Ruben», em O Rapaz da
Camisola Verde (1954); o poema sem título do Roteiro de 1968
chama-se «Um rio foge», em As Perguntas Indiscretas (1868), mas onde, em
dois versos (1.º e 9.º) a palavra «rio» substitui ou foi substituída pela
palavra «Lima»; e «Almocreve», no Roteiro de1970, passa a «Conquista»,
no Desterrado (1970).
Dois
destes poemas, porém, sofreram significativas alterações na sua estrutura:
«Embarque» e «Almocreve»/«Conquista». Começo por apresentar este último,
colocando na coluna da esquerda a versão (ainda inédita) saída no Roteiro
e, na coluna da direita, as alterações encontradas no livro.
«Almocreve» - Roteiro (1970)
|
«Conquista» - Desterrado (1970)
|
Vendo todos os meus versos
– Poeta de compra e venda!
Zomba de mim – mas os
versos
Haverá quem os entenda?
Vendo na rua, ao balcão,
E, às vezes, até na praia!
E o dinheiro que eles dão
Logo, frívolo, desmaia...
Riem tulipas na jarra
Do quarto onde ambos
dormimos
E a paz – uma paz bizarra!
Põe-nos, nas pálpebras,
limos...
E acordo, só, se outra
rima
Lembre, de súbito, a feira
Em que a luta quando anime
Torne a vida, verdadeira.
Bailo então, porém,
sòzinho
Como os Poetas que o são.
E o oiro sabe-me a
vinho...
E os versos sabem-me a
pão!
(Inédito)
Verão de 1970
|
….................................................
«Poeta de compra e venda»
Zomba de mim.
Mas os versos
…..................................................
…..................................................
…..................................................
…..................................................
Sonham tulipas na jarra
…..................................................
E a paz – uma paz bizarra! –
…..................................................
…..................................................
Lembra, de súbito, a feira.
«- Acima, Gageiro, acima!
Vê se vês a Pátria inteira!»
Por fim, bailo. Tão sòzinho
…...................................................
…...................................................
…...................................................
|
Amália e Pedro Homem
de Mello (dançando)
|
«Embarque» é, muito provavelmente, o
poema mais conhecido de Pedro Homem de Mello e, certamente, o mais popular. Não
com a estrutura com que inicialmente o publicou em Miserere (1948) e
transcrito no Roteiro (1969). Além disso, o título por que hoje é mais
conhecido - «Havemos de ir a Viana» - era, originalmente, «Embarque». Como se
sabe, este poema foi depois interpretado como fado por Amália Rodrigues, com
música de Alain Oulman. Eis as duas versões:
Miserere (1848)
e Roteiro (1969)
|
Versão cantada por Amália
|
Embarque
Se
o meu sangue não me engana
Como
engana a fantasia
Havemos
de ir a Viana
Ó
meu amor de algum dia!
E
entre sombras misteriosas
Em
rompendo ao longe estrelas
Trocaremos
nossas rosas
Para,
depois, esquecê-las.
Portanto,
de flor ao peito
Partamos
hoje... Amanhã
Pode
o pomar já desfeito
Não
nos dar toda a maçã.
Ciganos!
Verdes ciganos!
Deixai-nos
com esta crença:
-
os pecados têm vinte anos?
Os
remorsos têm oitenta!
|
Havemos de ir
a Viana
Entre
sombras misteriosas
em
rompendo ao longe estrelas
trocaremos
nossas rosas
para
depois esquecê-las.
Se
o meu sangue não me engana
como
engana a fantasia
havemos
de ir a Viana
ó
meu amor de algum dia
ó
meu amor de algum dia
havemos
de ir a Viana
se
o meu sangue não me engana
havemos
de ir a Viana.
Partamos
de flor ao peito
que
o amor é como o vento
quem
pára perde-lhe o jeito
e
morre a todo o momento.
Se
o meu sangue não me engana
etc.,
etc.
Ciganos
, verdes ciganos
deixai-me
com esta crença
os
pecados têm vinte anos
os
remorsos têm oitenta.
|
José
Maria Lacerda e Megre compilou e reproduziu, em Manuscritos e Outros
Inéditos de Pedro Homem de Mello (20112: 14-15; 1.ª ed. 2004),
o manuscrito deste poema, tal como, certamente, foi entregue pelo poeta aos
autores do fado-canção, com as alterações pedidas e/ou sugeridas. Eis a
reprodução do referido manuscrito:
Além do título, verificam-se algumas outras
modificações, na redação para ser cantada, a nível da estrutura estrófica e de
palavras. Na versão do fado, a 1.ª estrofe de «Embarque» passa a refrão, em
«Havemos de ir a Viana». A quadra, porém, é repetida (passando, por isso, a
oitava), com os versos 3 e 4 repetidos em ordem inversa, ou seja: verso 5 = 4 e
6 = 3, mas verso 7 = 1 e 8 = 2. A alteração mais significativa encontra-se,
todavia, na terceira quadra, que recebe, na prática, uma nova redação, de
conteúdo amoroso mais adequado ao fado e melhor acentuação métrica.
É
sabido que Pedro Homem de Mello foi, muito provavelmente, o poeta contemporâneo
de projeção nacional que mais cantou a região do Alto Minho, em geral, e de
Viana do Castelo, em particular. Nomeadamente Afife, onde possuía a Quinta de
Cabanas (outrora convento) e onde passava, todos os anos, largos períodos. Com
se leu e de novo se pode ler no poemas seguinte:
Canção
de Viana
ao Domingos de Carreço
|
Eu sou de
Viana, cidade.
Eu sou de
Viana que é vila.
Sou de Viana
e sou da aldeia
Sou do monte
e sou do mar.
A minha terra
é Viana!
Quem diz
Viana, diz Cerveira,
Quem diz
Cerveira, diz Agra…
- Só dou o
nome de terra
Onde o da
minha chegar!
Dancei a Gota
em Carreço,
O Verde Gaio
em Afife
(Dancei-o
devagarinho
Como a lei
manda bailar!)
Dancei em
Vile a Tirana
E dancei em
todo o Minho
E quem diz
Minho, diz Viana…
Ó minha terra
vestida
Da cor da
folha da rosa!
Ó brancos
saios de Perre
Vermelhinhos
na Areosa!
Virei costas
à Galiza;
Voltei-me
antes para o sul…
Santa Marta!
Trajo Verde…
(Como o povo
era poeta
Àquele trajo
(tão verde!)
Deram-lhe o
nome de azul…)
Virei costas
à Galiza
Voltei-me
antes para o mar…
Santa Marta!
Saias negras…
Mas como o
povo é poeta
Aquelas saias
tão negras
Têm vidrilhos
de luar!
Virei costas
à Galiza…
Pus-me a
remar contra o vento!…
Santa Marta!
Saias rubras…
Ó Santa Marta
vestida
Da cor do meu
pensamento!
A minha terra
é Viana,
São estas
ruas compridas,
São os navios
que partem
E são as
pedras que ficam…
É este sol
que me abrasa,
Estas sombras
que me assustam…
A minha terra
é Viana.
Ai! Este sol
que me abrasa
E estas
sombras que me assustam!(3)
|

(2) Nenhum Roteiro
traz paginação. O n.º indicado, todavia, sempre ajudará a localizar o poema, em
eventuais consultas.
(3) Pedro
Homem de MELLO, 1942: Pecado. Lisboa:
Edições Gama, pp. 51-54. (Pref. de José Régio.) Também em P. H. MELLO, 1983: Poesias Escolhidas. Lisboa: IN-CM, pp.
54-55.
NB – Em todas as citações, transcrições e referências,
respeitei a grafia das edições consultadas.
* Este texto foi publicado, inicialmente, na revista A Falar de Viana, 2014, pp.183-189. A sua reedição, neste blogue, sofreu, naturalmente, ligeiras
alterações de apresentação gráfica.